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Cultura como língua franca
Núcleos culturais em comunidades de imigrantes no Porto
Reportagem SET: Cultura como língua franca

Setembro marca a rentrée cultural — há um tinir no ar de palcos que são montados, amplificadores que voltam a zumbir, luzes que acendem com um estalido tão rápido como quando se apagaram. O mote sugerido nesta época é o de regresso, mas há entre os agentes culturais quem mais facilmente se identifique com uma chegada. Procurámos em algumas comunidades de imigrantes quem faz da cultura a ponte com o novo país, enriquecendo esta língua comum com palavras e sons novos.

140 anos que se cumprem com infância
Escola Dança Paz — Clube Fenianos Portuenses

O clube deve o seu nome aos republicanos irlandeses, procurou no Brasil inspiração para o seu lendário corso novecentista e, quando atravessamos o soalho de pau-cetim e madeira de macaúba, deparamo-nos com a exposição de um pintor húngaro. A multiculturalidade está inscrita nos Fenianos desde o primeiro momento, como afiança o presidente da direção, Vítor Tito. “Desde 1904 que os Fenianos consideram que a cultura é o fator mais crítico para formar cidadãos, e fazer com que a cidade fosse mais coesa. As primeiras escolas primárias no Porto foram financiadas pelos Fenianos porque era fundamental educar.”


Com um edifício-sede que toma quase todo um quarteirão só para si, no topo dos Aliados, o Clube Fenianos Portuenses tinha vindo a enfrentar os desafios comuns a coletividades: a ausência de moradores no centro e a multiplicação de espaços de lazer fez diminuir consideravelmente a massa associada, e o público que a ele acorria.


Enquanto as várias salas dos Fenianos se mantiveram no local de sempre, Elena Pilipenko ia fazendo o seu caminho. Estudou dança na sua Kiev natal, na Ucrânia, embora tenha sido sempre na Rússia que tenha vivido. Foi também na Rússia que começou a ensinar dança a crianças, mas o excessivo número de alunos de um país tão ancestralmente ligado ao género levou-a a procurar um estilo de vida mais calmo em Itália. Porém, apenas encontrou o ritmo ideal quando chegou ao Porto, em 2017, não voltando a sair.

Reportagem SET: Cultura como língua franca

© Andreia Merca

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© Andreia Merca

De facto, na comunidade em que se integrava, o movimento era o das chegadas — movimento que, mais recentemente, se intensificou com um grande número de pessoas que procuraram refúgio do conflito que grassa entre a Ucrânia e a Rússia. Diz-nos que existe uma “mistura entre os que são recém-chegados e os imigrantes já de longo prazo”, e que a convivência entre russos e ucranianos não era abertamente hostil, mas que se “mantinham afastados”. “O problema não eram as crianças, eram os pais”, sublinha.


Com o tempo, a pressão das rendas ameaçou a existência das suas aulas de dança, e a solução surgiu nos Fenianos, que abraçou de bom grado uma iniciativa em linha com os princípios multiculturais da sua fundação. Assim, a Escola de Dança Paz (com alunos dos 4 aos 12 anos de idade) afirma-se como uma “ferramenta de integração”. Vítor Tito explica que o objetivo foi tornado claro a todos os pais, em reunião no Salão Nobre dos Fenianos, e que “houve algumas desistências, sobretudo por causa do nome”. Mas, entretanto, o número de alunos apenas tem aumentado, e hoje em dia são mais de 40. Além das crianças russas e ucranianas, há agora crianças com origens em Espanha, Cazaquistão e, claro, Portugal. “A nossa aluna portuguesa é neste momento campeã nacional”, salienta Elena Pilipenko.

Com a chegada das crianças aos Fenianos — corredores que “não viam crianças há décadas” — chegam também os pais que, aos poucos, se aproximam do clube. Neste momento, já vários desses pais são músicos que integram os concertos de música clássica e de jazz do clube, com concertos regulares aos fins de semana.


Os interessados em inscrever-se na Escola Dança Paz devem dirigir-se à secretaria do Clube Fenianos Portuenses.

Bons vizinhos e ruas amargas
Associação Bangladesh do Porto

Alam Shah Kazol usa diversos chapéus: é membro da assembleia de freguesia do Bonfim, é o presidente do Centro Cultural de Muçulmanos do Porto, é membro da associação de integração social Espaço T, colabora com a Agência para a Migração das Nações Unidas e, por fim, é fundador da Associação Bangladesh do Porto. Quando nos encontramos com ele numa esplanada da Praça da Batalha, o malabarismo necessário para conjugar todas estas funções é evidente: o telemóvel está continuamente a tocar, e Alam parece nunca conseguir dizer ‘não’ quando se trata de prestar alguma ajuda.


A história de Alam em Portugal começa em 1992, acabado de chegar de Amishapara, no Bangladesh. Nos primeiros oitos anos vive e trabalha em Lisboa, mas tendo já, ocasionalmente, visitado o Porto, onde residiam uns amigos, acaba por decidir mudar-se de vez para a capital do Norte. “Aqui há mais natureza”, resume, “é mais simpático e calmo, e as pessoas são mais acolhedoras”.

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© Renato Cruz Santos

Conhecendo bem os problemas que um imigrante sente ao chegar, assim que chega à cidade, Alam cria a Associação Comunidade do Bangladesh do Porto. Num pequeno T3 (à altura com renda ainda acessível) organizavam ajuda aos novos residentes provenientes do Bangladesh, e forneciam-lhes aulas de português regulares — “a língua é sempre a maior barreira, nós falamos bengali, que não tem nada em comum com o português, nem sequer o alfabeto”. Hoje, a situação inverteu-se: já há quase necessidade de começarem aulas de bengali. “Agora, por exemplo, a minha filha mais nova, nem fala bengali, só português”, conta.

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© Paulo Cunha Martins

Nos primeiros anos de atividade, a Comunidade Bangladesh do Porto organizou uma série de três festas de celebração da cultura bengali no antigo Cinema Batalha, em 2007, 2008 e 2009, tendo o edifício encerrado pouco depois. 14 anos mais tarde, a história da comunidade volta a passar pelo Batalha com o convite do novo Centro de Cinema na criação do programa “Vizinhos” (que valeu ao Batalha o Prémio Acesso Cultura — Mickaella Dantas), desenvolvido em conjunto com a comunidade do Porto com raízes no Bangladesh. Trata-se de um programa contínuo de conhecimento mútuo em que a população bengali que reside perto do Centro de Cinema é convidada a programar cinema. Entrevistas foram conduzidas com diversas pessoas, explorando a sua relação com o cinema, e as suas preferências. Em 2023, este trabalho de continuidade resultou em três sessões de filmes bengali escolhidos pelos vizinhos do Batalha, trazendo novos públicos e uma nova língua a este equipamento cultural. Alam promete que “vai haver novas sessões, o trabalho com o Batalha não parou”.

Esses residentes, no entanto, atravessam hoje um período mais difícil. Afetados, como todos, pela crise da habitação, as elevadíssimas rendas são proibitivas para qualquer pessoa, mas mais ainda para quem acaba de chegar e não tem ainda um rendimento confortável. Alam refere-se aos casos de sobrelotação de habitações como uma situação que deve de todo ser evitada, mas compreende que “com rendas de 1.500 euros na zona onde trabalham, aqui na baixa, os novos imigrantes só conseguem suportar esse custo dividindo-o com um elevado número de pessoas, e também há quem se aproveite do desconhecimento destas pessoas para cobrar valores elevados”.


Além da habitação, a sensação de crescente insegurança é, também, uma preocupação de Alam. Sempre procurou, através da associação, promover pequenas festas que celebram a cultura bengali, e sempre abertas ao público português, para que os dois povos se conheçam melhor. Diz que nunca se sentiu verdadeiramente alvo de xenofobia no Porto — até recentemente, quando, após as agressões a imigrantes dentro de suas casas no passado maio, fez uma demonstração pública de solidariedade e prestou declarações à TV. “Sinto que as pessoas agora estão mais à vontade para falar, para mandar bocas”, conclui.

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© Renato Cruz Santos

Unidos pela Língua

Instituto Pernambuco – Porto

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© Nuno Miguel Coelho

É na Rua das Estrelas, mesmo em frente ao Teatro do Campo Alegre, que encontramos o Instituto Pernambuco, um amplo edifício envidraçado, projetado pelos arquitetos brasileiros Acácio Gil Borsoi e Janete Costa. Foi fundado em 1996 com o intuito de ser a casa dos brasileiros em Portugal.


Desde a sua abertura ao público, há dois anos, a programação do instituto tornou-o um ponto de encontro para quem deseja explorar a riqueza cultural do Brasil. Germana Soares, gestora do projeto desde 2019, veio do Recife para Portugal para terminar o mestrado em Museologia, e começou a trabalhar no instituto. Com raízes portuguesas, recorda os natais no Brasil com bolo-rei na mesa, mas é com um saltitante sotaque pernambucano que acolhe calorosamente os visitantes.


Apesar do nome remeter ao estado de Pernambuco, “a missão do instituto é abrangente. Espalhar a cultura brasileira em várias dimensões: académica, empresarial e social”, conta. Dentre os eventos organizados, destacam-se as celebrações do Carnaval, do São João e o Dia do Nordestino. Além disso, o instituto oferece “uma mostra de cinema anual e uma exposição permanente de artesanato pernambucano que destaca o trabalho dos artesãos do Estado.”

A maioria dos trabalhos foram doados pelos próprios artesãos, denominados na gíria como mestres. Janete Costa, arquiteta do edifício e figura de renome, começou a utilizar algumas destas peças em projetos decorativos, iniciando uma campanha pela sua valorização. Hoje, não só a subsistência destes artesãos está assegurada, como o pernambucano pode ver a sua identidade preservada e traduzida neste artesanato.


Zeferino Ferreira da Costa, o presidente do instituto, idealizou este espaço como um ponto de união entre portugueses e brasileiros. Emigrado no Brasil há mais de 60 anos, Zeferino acredita que Portugal e Brasil ainda têm muito a conhecer um do outro. O instituto visa estreitar esses laços, ao partilhar a diversidade cultural brasileira e ao manter os brasileiros em Portugal próximos das suas origens.

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© Nuno Miguel Coelho

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© Nuno Miguel Coelho

“O nosso objetivo é dar a conhecer este espaço à cidade e fazer com que os portugueses também se sintam acolhidos e curiosos pela nossa cultura. Queremos também ter atividades nossas que façam parte da programação cultural da cidade, para que possamos continuar o nosso propósito.” Este ano, receberam o projeto municipal “Cinema Fora do Sítio”, com projeção de um filme no exterior do edifício de forma a dar a conhecer estas instalações ao público português.


A dedicação do Instituto Pernambuco em criar um espaço inclusivo e culturalmente rico reflete-se na diversidade dos seus eventos gratuitos, proporcionando experiências imersivas na cultura brasileira através da música, dança, artesanato e cinema. Ainda com uma trajetória jovem, o instituto está empenhado em expandir e introduzir novos eventos anualmente — mas para já convida toda a comunidade a visitar a sua exposição permanente e a estar atenta à sua programação.

Uma porta de entrada para acolher artistas imigrantes no Porto

Coletivo Epifania

Fundado no final de 2021, no Porto, o Coletivo Epifania reúne artistas e criativos imigrantes de diferentes áreas, que “unem esforços com o propósito de promover arte, cultura e diversidade”. Esta associação cultural, que conta com 12 elementos na sua direção, e que tem ‘lugar cativo’ na Casa D’Artes do Bonfim, pretende “criar espaços de reflexão, diálogo e transformação, através de projetos colaborativos e intervenções artísticas”.


Vinicius Armistrong é um dos membros ativos do coletivo. Mudou-se para o Porto em 2018 e, em 2019, “um pouco antes da pandemia, começou a articular-se com os movimentos sociais de imigrantes” da cidade. Desses contactos surgiram grupos informais que, depois da pandemia, viraram associações. “No Coletivo Epifania somos de áreas diferentes, e começámos a fazer oficinas abertas para aprendermos uns com os outros; depois, apercebemo-nos que podíamos criar um projeto com oficinas gratuitas para ensinar não apenas os nossos amigos, mas quem quisesse aprender.”

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Batekoo © Rui Meireles

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Rafaella Lemos, Rafaela Santos e Vinicius Armistrong © Rui Meireles

"Fomentar a inclusão e a participação de grupos marginalizados” em projetos artísticos e culturais e apoiar a comunidade artística imigrante são dois dos objetivos do coletivo. “Por vezes, o sistema não sabe lidar com as pessoas novas [que trazem outros projetos à cidade], mas acho que tem melhorado”, refere. Nesse sentido, aponta a vinda, em julho, dos Batekoo ao Hard Club, pela mão do Coletivo Epifania. Trata-se de uma plataforma de entretenimento, cultura e educação por e para a comunidade negra e LGBTQI+ do Brasil. “Trazer ao Porto os Batekoo, que já são uma referência no Brasil para a comunidade queer e negra, é muito importante para nós. Eles são uma referência daquilo que queremos ser cá”, afirma Vinicius.


Dentre os vários projetos desta associação constituída por imigrantes brasileiros, Vinicius destaca o festival RUA, que costuma acontecer em junho. Foi o primeiro evento criado pelo coletivo, e é o acrónimo de Resgate, União e Ativação, os três eixos deste projeto comunitário que começou no Bonfim e que se expandiu para a freguesia vizinha de Campanhã. “Agora a gente está tentando expandir o RUA a nível nacional, e fizemos, também, duas ações no Brasil.”

O eixo do Resgate foca-se nas oficinas artísticas gratuitas que o coletivo promove. “Os projetos de arte educativos sempre plantam uma semente e acabam por funcionar como uma espécie de resgate cultural junto das comunidades, isso aconteceu comigo”, conta. Já o eixo União diz respeito à plataforma “Arte, Cultura e Comunidade”, uma revista digital que pretende unir artistas do Brasil e de Portugal para que “conheçam o trabalho uns dos outros”. “E queremos mostrar que a gente quando vem para a Europa [não deixa de criar]; queremos mostrar que há pessoas imigrantes que estão resistindo através da cultura, também”, afirma Vinicius. “Por fim, o eixo Ativação diz respeito ao território, e é o festival que ‘ativa’ o território”. E acrescenta: “Costumamos desafiar os alunos que fizeram as oficinas de fotografia ou de mixagem, por exemplo, para participarem no RUA, que costuma acontecer em territórios mais marginalizados, como nos bairros do Cerco, de Contumil, Machado Vaz e nas Fontainhas. A gente costuma ser muito bem recebido, de coração aberto”, salienta.


O Festival Epifânico é outro dos eventos organizados por este coletivo brasileiro que, desde que foi criado, já promoveu mais de trinta oficinas gratuitas. Neste momento, está a decorrer uma oficina de circo.

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© Rui Meireles

por Gina Macedo, Maria Bastos e Ricardo Alves

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