PT

EN
Reportagem
Editoras Independentes do Porto
Fazer o que não está feito
Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Ninguém vai enriquecer com isto — quem trabalha nas editoras independentes fá-lo por sede de fazer a música acontecer. Do take um de gravação do álbum até aos amplificadores serem ligados na primeira data da tour, há uma montanha de etapas para escalar. Há produção de som, artwork para o álbum, fabrico de vinis e CDs, distribuição, agenciamento, e ensaios para tocar com o mínimo de pregos possível. E nem sequer acaba no encore: a banquinha de merch está pronta a emboscar quem está a tentar habituar os olhos à luz, à saída da sala, para fazer a música render mais do que os cêntimos do streaming. Falámos com algumas editoras independentes com ação no Porto para descobrir que calos se ganham nesta subida ao palco.

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Márcio Laranjeira, José Roberto Gomes, Joaquim Durães, Ângela Silva e Celeste © Rui Meireles

20 anos a fazer amantes


Não é possível falar de uma editora independente que está quase (em 2025) a celebrar 20 anos sem falar na cidade. Quando a Lovers & Lollypops surge, o aparelho turístico do Porto estava ainda em estado larval, e o centro da cidade sangrava atenções para pequenos focos de entretenimento periféricos. “Só foi há 19 anos, mas parece que foi há 60”, resume Joaquim Durães. O cofundador da editora recorda como “não tinhas sala de concertos onde as bandas mais emergentes ou mais experimentais pudessem apresentar, havia pouquíssimas editoras, e não havia espaço em palco para certo tipo de música”.


O espírito faz-tu-mesmo ataca e começam a ser gravados CD-Roms e agendados concertos em todas as garagens que os aceitassem. Os primeiros recrutas da longa marcha foram bandas como os Green Machine, de Barcelos, os Veados com Fome, de Santo Tirso, ou os Lobster, de Lisboa. “A parte editorial foi um elemento fundador, e tudo o resto veio um pouco por arrasto.”

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Joaquim Durães e Márcio Laranjeira © Rui Meireles

"Só foi há 19 anos, mas parece que foi há 60 — não tinhas sala de concertos onde as bandas mais emergentes ou mais experimentais pudessem apresentar."

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

© Rui Meireles

Esse arrasto prolongado viu mudar o paradigma de “sair à noite” na cidade: passou a ser no centro, e começava por tratar de saber quem tocava, e onde — o resto, logo se via. Os primeiros eixos de uma movida pontuavam-se com bares com uma cave insonorizada ou vizinhos complacentes. Daí até juntar todas as bandas num festival-emblema foi um salto. Depois de uma festa-protótipo em Lisboa, o primeiro Milhões de Festa aconteceu no Uptown, em 2006. Desde então, assegurou cinco edições como um grande festival a céu aberto em Barcelos, a casa espiritual de muitas pessoas e bandas associadas à Lovers.


Encontramo-nos com Joaquim Durães, Márcio Laranjeira, Ângela Silva e José Roberto Gomes no espaço que ocupam na Rua de São Vítor, em pleno Bonfim criativo. Ainda na (boa) ressaca de mais uma edição do festival Tremor, nos Açores, que produzem, põe-se a hipótese de como seria terem começado a Lovers nos dias de hoje. Em jeito de resumo, Márcio Laranjeira fala em como “diferente seria de certeza”. “O panorama mudou no sentido em que é cada vez mais comum, felizmente, uma estrutura como a nossa conseguir-se profissionalizar e sustentar funcionários.” Uma profissionalização que é, portanto, mais do que deixar de usar as próprias casas como alojamento para músicos convidados, ou pedir carrinhas emprestadas para levar instrumentos. Uma profissionalização que permite ter uma relação mais estável e mais justa com quem colabora.

Márcio atalha ainda que “a cidade mudou, e nós também não somos as mesmas pessoas que éramos desde essa altura”. Mas, então, quem são as pessoas agora, e quem é esta Lovers? O que mais define o novo rumo é o espaço novo (em funcionamento há pouco mais de um ano) onde promovem concertos, sessões de escuta e oficinas. Ângela Silva fala da alquimia que só é possível num espetáculo ao vivo, porque “mesmo que coabitem num só sítio, toda a gente tem uma perceção diferente. E isso é que traz o crescimento — para nós, e para quem cá vem”.


Exemplo disso são as Sessões de Escuta, em que uma banda fala um pouco sobre um álbum que é depois escutado em conjunto com o público. “Acontece naturalmente o público e os convidados [partilharem] várias ideias sobre o disco, ou ideias que cada um encontra na música que ele contém”, afirma Ângela, acrescentando que têm sempre, também, “o nosso ex-libris, que são as sopas do Zé Roberto”.

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Ângela Silva © Rui Meireles

Exemplo também é o programa Perímetro, uma provocação da Lovers aos coletivos e galerias sediados numa freguesia em ebulição artística, em que se convidam todos os espaços circundantes a abrirem portas e integrarem um circuito de espaços que possam, desta maneira, partilhar públicos. Porque alguns comprimentos de onda só podem ser atingidos quando alguém está ao nosso lado.

Reportagem MAI: Fazer o que não está feitoReportagem MAI: Fazer o que não está feitoReportagem MAI: Fazer o que não está feito

Serenidade no planalto

Esse comprimento de onda com frequência baixa é também a casa de uma editora que se chama Planalto Records, mas que também se podia chamar Diogo Alves Pinto. A Planalto é um one-man show há quase dez anos, sendo casa de artistas com registos intimistas e serenos. “Há uma lógica de solidão em tudo o que eu faço, mas não é propositado.” Medindo sempre as palavras, e dando tempo às respostas para que se formulem antes de serem tocadas, Diogo recupera o momento de fundação: “Os artistas têm uma grande tendência a não se interessarem pelo outro lado da música, a distribuição e a produção. Mas mesmo quando eu tocava como Gobi Bear, esse lado sempre me despertou uma grande curiosidade.”


Os loops e pedais de Gobi Bear estão no princípio de tudo, mesmo no tal registo solitário. No início da década de 2010, com uma frequência de concertos de à volta de 90 por ano e um mestrado em Engenharia de Som a acontecer em simultâneo, Diogo sentia-se mal ao recusar mais concertos em nome próprio. Daí surge uma máscara conveniente e clínica: o selo e assinatura da Planalto Records. Esta função de assistente virtual evolui muito depressa: um amigo, Gabriel, insistia em não gravar nem soltar a música que ia compondo na guitarra.

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Diogo Alves Pinto © Renato Cruz Santos

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Vitória Vermelho em concerto no Apuro, © Renato Cruz Santos

A Planalto assume aqui o empurrão, e surge o projeto Ana — o primeiro de vários a serem editados debaixo da máscara que originalmente só era usada para afastar. “Nessa fase inicial, eu cedia o selo para edições de autor, e estava encarregado da parte do agenciamento, do management. Comecei a perceber que havia uma dor comum — a malta não adorava a ideia de fazer toda essa parte do processo, mas que eu gostava”. Daí, a Planalto evolui para uma editora, sempre com dois critérios essenciais para a entrada de novos artistas: “Primeiro, eu tenho de gostar mesmo muito daquilo que está a ser feito, porque senão desligo-me. Mas o segundo ponto, que é tão importante quanto o primeiro, é eu conseguir acrescentar algum valor àquilo que é o projeto musical em questão. E então, nesse cenário, eu acabo por fazer projetos muito parecidos do ponto de vista de estética àquilo que eu sempre fui desenhando.”


Não que isso implique uma monocultura no catálogo: a Planalto já contou com concertos com sintetizadores e osciladores, e indie pop em registo de guitarra acústica, sem qualquer tipo de eletrónica. Mesmo a ação da Planalto não é monolítica: por longos períodos, uma editora 360 que faz tudo desde a produção de som ao agenciamento — por outros períodos, com esforços contidos e reservados à criação. Afinal, faz sentido que uma editora tão pessoal como a Planalto acompanhe os ritmos que quem a fundou. O período atual promete ser de expansão: quando encontramos Diogo, no bar Apuro (onde a Planalto faz curadoria de concertos mensais), é durante as montagens para o concerto com Vitória Vermelho, alguém que não está ainda oficialmente no catálogo — mas que está já claramente em sintonia com os outros artistas.

Ao socorro dos melómanos

João Pimenta esteve presente na criação da Lovers & Lollypops e, após fundar a editora com Joaquim Durães, agarrou todas as estradas do mundo com as tours frenéticas de 10.000 Russos — banda que ao longo de 10 anos teve quase uma média de um concerto por semana. Pelo caminho, houve tempo para ser professor de História, mas o projeto de corpo e alma é agora a loja de discos Socorro.


Quem entra é logo chamado pelos longos expositores com discos de vinil, mas o espaço amplo tem um mezanino superior com uma livraria inteiramente dedicada à música, e para quem escolhe a data certa, há oportunidade de descer à cave, onde um palco e um bar recebem concertos a um ritmo de cerca de uma dezena por mês. 

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

João Pimenta © Renato Cruz Santos

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Socorro © Renato Cruz Santos

“Na altura [das tours] andava a dormir mais com o guitarrista do que com a minha mulher”, lamenta-se João. A ideia seria agora ter um projeto menos frenético, mas, em boa verdade, a Socorro não parece estar a desacelerar: até porque o lado editorial continua a crescer. Neste momento já editaram um álbum d’Os Overdoses, e o plano é aumentar o catálogo — não só com bandas, mas também reedições de álbuns clássicos. Vão recebendo propostas de bandas para serem editadas pela Socorro, mas assumem desde logo curadoria dos projetos que aceitam. “Só editamos coisas que nós próprios gostaríamos de ouvir; à partida, tem que ser algo com guitarras!”


Já na dimensão dos concertos, é tudo ao molho: “Tão depressa temos aqui música experimental como black metal.” Uma diversidade que acaba por gerar uma força gravítica específica. “A coisa que me tem dado mais gozo tem sido ver malta com quinze ou dezasseis anos lá em baixo [na sala de concertos]. A maior parte do público ainda anda na secundária, e, porra!, é dar-lhes um palco que de outra forma dificilmente conseguiriam. Tivemos cá bandas que deram o primeiro concerto da vida.”

Os planos de futuro da Socorro são simples: mais de tudo. Mais exposições de jovens artistas nas paredes, mais edições, mais livros no piso de cima, mais concertos no piso de baixo. Em suma, o cabo dos trabalhos. Mas para João isso é uma escolha simples: “Mais vale fazer isto do que ser advogado.”

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

A salivar por mais e mais

Não são advogados, mas logo no seu manifesto a Saliva Diva diz ao que vem: “Dar espaço comum a artistas que caminham isoladamente” porque “queremos rir, chorar, pensar, bezerrar e dançar”. O tal espaço comum é sacro: a editora é gerida como um coletivo, e nenhuma decisão é tomada sem haver unanimidade total. Pode ser o método mais difícil de gestão, mas a verdade é que se a unanimidade não está lá para acolher um novo artista, também isso é um sinal, porque “nós não temos uma capacidade infinita para editar discos, e como todos trabalhamos para a editora sem receber, é bom que as pessoas sintam alguma ligação com o que estão a fazer”, afiança Ricardo Cabral, dos Baleia Baleia Baleia.


A capacidade pode não ser infinita, mas parece. Lançaram já 19 discos de 18 artistas nos quatro anos de existência que levam, e montaram concertos de Norte a Sul de Portugal: de Odemira a Braga, de Coimbra ao Funchal. Mas esta atividade à velocidade da luz começou, em boa verdade, no escuro. O Quarto Escuro, nome dado a um pequeno andar arrendado na Rua de Cedofeita, foi um foco de liberdade criativa. Pensado como uma opção mais barata para estúdio, longe dos valores dos estúdios para aluguer e sem o trabalho de desmontar o material de cada vez que se terminava uma sessão, esse pequeno andar acabou por ter a sua própria força gravítica.

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Ricardo Cabral, Daniel Catarino, Luís Rocha, © Renato Cruz Santos

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Luís Contrário em atuação no Maus Hábitos, © Renato Cruz Santos

“Acontecia com muita frequência grupos de pessoas, amigos nossos que iam parar ao estúdio, muitas deles que nunca tinham tocado e que chegavam ali, pegavam num baixo, ou iam para a bateria e ficávamos ali horas só a divertirmo-nos”, relembra Ricardo. Essas jams acabaram por fazer com que o músico começasse a produzir alguns álbuns mesmo ali porque “ninguém recebia muita resposta das grandes editoras”.


Daí para a Saliva foi um salto: “Percebemos que tínhamos uma série de malta no meio deste circuito que estava no mesmo ponto que nós e que, se juntássemos estas pessoas, então conseguíamos fazer uma coisa que nos representasse a todos.” É Daniel Catarino que o relembra, entretanto, já com dois lançamentos na Saliva. De novo, dois temas centrais na editora: a pluralidade e a diversão.

Neste mês de maio, a Saliva assume o registo de produtora de eventos numa coprodução com a Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto no FAUPFest. E, falando em pluralidade e diversão, quando lhes é lançado o desafio sobre se iremos ver um festival só com bandas da Saliva Diva, admitem que isso “é mais do que uma brincadeira, acaba por ser quase uma linha orientadora”. “Olhamos para o nosso catálogo e sentimos que faz um festival com bastante sentido em termos de lineup — e é algo que ajuda também a perceber se cada novo artista que acolhemos faz sentido ou está um pouco fora da linha que temos”, assegura Luís Contrário. Deste lado, apenas aguardamos as datas.

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Monch Monch Monch em atuação no Maus Hábitos © Renato Cruz Santos

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

por Ricardo Alves

Reportagem MAI: Fazer o que não está feito

Partilhar

LINK

Relacionados

agenda-porto.pt desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile