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Em outubro foi, finalmente, aprovado o regulamento camarário para a atividade dos artistas de rua, tendo entrado em vigor no mês passado. Um passo saudado por quem leva a sua arte à rua, procurando ligações fugazes com quem passa. Os músicos de rua tendem a ser o foco de uma atividade que também é associada aos pequenos atritos que se geram com autoridades e comerciantes. Falamos com quatro pessoas que encontraram na rua a maior sala de espetáculos da cidade.
Há quem olhe para músicos de rua com desconfiança, quase como uma figura mendicante. Mas também é frequente encontrar uma massa humana que se reúne em semicírculo, com um saco de compras na mão e telemóvel em riste na outra, a assistir a uma interpretação empolgada de uma canção familiar. Esta provocação a quem não planeava interromper o seu caminho é assumida como uma grande motivação para Estrela Gomes, que diz que “é em fazer alguém parar que está a magia”.
Natural de uma vila da zona de Coimbra, Estrela começou por tocar na rua aos 14 anos, por carolice, e apenas nas férias escolares. Munida de uma guitarra que já manejava com naturalidade, via nestes pequenos concertos não só uma forma de diversão, mas também uma maneira de treinar a voz – hoje, usa a voz até para imitar o som de um trompete (mouth trumpet), um truque habitualmente apreciado pela sua audiência. Também já não toca na rua apenas por carolice – apesar de ter prosseguido estudos na área administrativa, vive apenas da música: toca em hotéis, em eventos corporativos, em festas.
© Inês Aleixo
© Inês Aleixo
E, desde que se mudou para o Porto, verificou que é possível sobreviver tocando na rua: “Há dez anos, éramos, se calhar, dez músicos de rua em toda a cidade. E toda a gente se conhecia, se calhava de nos cruzarmos em Santa Catarina tocávamos logo ali um dueto.” Mas hoje tem uma atitude um pouco diferente: “Para mim é importante respeitar a rua. Já hesito em, por exemplo, tocar com uma formação de banda na rua porque é muito barulho, muito espaço que se ocupa. Quando vês tunas a tocar, notas que às vezes estão a tapar por completo a montra de um comerciante.” – Esta sabedoria das ruas vem do seu longo percurso: “O músico é só mais um elemento da rua, temos de saber estar em harmonia com todos os outros que dependem dela para sobreviver.”
Nesse sentido, manifesta contentamento com o novo regulamento dos artistas de rua: “Sinto que é um bom ponto de partida, ainda há algumas coisas a corrigir. Mas tiro o chapéu, era uma coisa que esperávamos há muito.” Mais até do que apenas esperar, Estrela fez parte de um conjunto de músicos de rua que partilhou sugestões de regulação com a Câmara Municipal. Esse esforço colaborativo veio também de uma necessidade de os músicos estarem em contacto e se articularem sobre que espaços ocupar e quando: longe estavam os tempos em que eram apenas dez a tocar na rua. “Diria que hoje em dia há cerca de 100 músicos a tocar na rua no Porto, e a maioria não estão interessados em coordenar-se com os outros”, diz.
Quem também já viu esforços de articulação entre músicos de rua a ruir foi Greta Wardega. Natural da Polónia, sempre sentiu uma atração pela música dos Balcãs. Torna essa atração em proximidade ao mudar-se para a Croácia para estudar, e é ali que tem o primeiro contacto com concertos de rua. Mas a vontade de rumar leva-a a passar pela Áustria, Bélgica, Espanha e, finalmente, por Portugal: “Por fim, foi o mar a parar-me.”
Greta recorda-se de tocar na rua com a sua banda, os Balklavalhau – palavra combinada de “bacalhau” e “baklava”, sobremesa típica dos Balcãs e Turquia, assumindo a fusão entre a musicalidade balcã e o país onde a banda se formou. Corria a segunda metade da década de 2020 quando os Balklavalhau se dedicavam a tocar nas ruas do Porto, e Greta fala de haver “uma energia diferente na cidade, com mais possibilidade. Era mais fácil encontrar um sítio onde tocar, era tudo um pouco mais relaxado”.
© Inês Aleixo
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Hoje, a banda já quase não toca na rua: “Há muitos artistas que são um pouco as ‘piranhas’ do negócio, não têm interesse em partilhar o espaço. Alguns membros da nossa banda ainda tentam ir tocar na rua, mas encontram espaços como as ruas de Cedofeita ou das Flores completamente cheios.” Ainda assim, ressalva que no Porto encontrou o “ambiente mais relaxado” de todos os países onde tocou: “Em Cracóvia (Polónia), há já algum tempo que o centro da cidade é uma Disneylândia. É impossível tocar sem licença, mas também não respondem aos pedidos. Em Barcelona também não é fácil, tens de ter muito cuidado com os locais que escolhes.”
A escolha de um bom local não se prende apenas com o fluxo de pessoas ou com o espaço para juntar uma boa massa de público. Josefina, professora e atriz chilena, que começou a tocar nas ruas do Porto há cerca de três anos, revela que “por vezes, até há outros músicos que nos perseguem e insultam apenas por estarmos a ocupar um espaço onde eles querem tocar”. “E chegam mesmo a ligar à polícia para nos retirar. Tudo muito negro”, lamenta. Apesar disso, concorda que no Porto há melhor ambiente para os músicos de rua do que o habitual: “A polícia não confisca os instrumentos, o que é muito bom. E até houve um polícia que esperou que eu terminasse uma canção para me pedir para parar de tocar, o que é inconcebível noutras partes do mundo.”
Essas outras partes do mundo compreendem não só o Chile, como também o sul do Vietname, onde Josefina passou algum tempo após se formar em Teatro. O treino nota-se na presença na rua – apesar de cantar uma música de composição sua de cariz triste e lento, projeta a voz de uma forma que faz cabeças voltarem-se. O treino de dramaturgia ajuda também no envolvimento com aquelas pessoas que Josefina sente estarem a responder à música, ainda que seja de forma tímida e disfarçada – procurando ela agarrar essa atenção: “Entendo bem que as pessoas não queiram ou não possam dar dinheiro, mas às vezes basta oferecerem um sorriso que já sinto que vale a pena estar aqui a tocar.”
Sobre o “rendimento” destas prestações, Josefina admite que os turistas “dão mais, muito mais”, mas que lhe dá mais gozo tocar para portugueses porque “se identificam muito mais com a música”. “A ranchera, a música latino-americana, tem muito esta coisa do sofrer. Na zona da Ribeira há um senhor que, sempre que me vê, pergunta ‘como está a fadista’, e eu adoro!”
© Inês Aleixo
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Já Felipe Mueller opta não por tocar composições tristes, mas antes melancólicas. Natural de Joinville, no estado brasileiro de Santa Catarina, o envolvimento de Felipe com a música começa muito cedo, começando pelo violão tocado na sua igreja, passando pelas aulas de bateria, e desembocando na banda com os amigos da escola. Mas aos 18 anos dá-se um abandono: “Rolou uma decepção porque pensei que não iria ser um virtuoso, não iria ser o melhor do mundo. Os virtuosos passam o dia fechados em casa a praticar e a estudar, e eu gostava demasiado de sair de casa e curtir a minha vida.”
Após concluir os estudos em Administração, na Irlanda, vê-se finalmente com tempo para pegar de novo nos instrumentos. Mas é em Portugal que experimenta pela primeira vez tocar na rua. E experimenta fazê-lo também pela primeira vez com instrumentos de sopro. Foi uma espécie de ensaio a céu aberto em que Felipe “passava três horas a tocar em Santa Catarina, e voltava para casa só com 15 euros, mas feliz da vida porque pegou nos sopros por paixão, nunca esperou fazer dinheiro com isso”.
Hoje, Felipe pode ser visto deslocando-se numa bicicleta com um atrelado capaz de transportar toda a família de instrumentos: a pequena coluna de som, o pandeiro, o clarinete, o saxofone tenor e a flauta. E é habitualmente encontrado em locais um pouco mais recatados e serenos: “Gosto de locais de paz, onde ainda seja possível ouvir os pássaros. O Bill Evans costumava dizer que podia até estar dentro de um armário, mas se a música fosse boa, o público saberia onde o encontrar”.
por Ricardo Alves
© Inês Aleixo
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