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Fotografia © Rui Meireles
E se o mundo tal como o conhecemos já tivesse acabado? Se o futuro fosse apenas um eco distante do nosso próprio passado? Em Quem Cuida do Jardim, Cristina Carvalhal leva-nos para um tempo onde a humanidade já entrou em extinção, mas há ainda quatro sobreviventes que tentam encontrar um novo começo. Entre eles, um ser humano criado em laboratório, geneticamente programado para cuidar. Mas será possível reconstruir um mundo sem repetir os mesmos erros?
O espetáculo, que está nos dias 8 e 9 de março no Teatro Helena Sá e Costa, é um mergulho profundo na história e nas formas de organização social que foram esquecidas ou apagadas. Como viviam as sociedades antes da imposição dos modelos hierárquicos que conhecemos? Existiram formas mais igualitárias e sustentáveis de viver? Olhar para trás com sensibilidade e espírito crítico é o convite que Carvalhal nos lança.
A peça nasce de uma pesquisa extensa sobre a trajetória da humanidade, do Neolítico às comunidades indígenas da América do Norte, passando pelas ideias que inspiraram a Revolução Francesa. Entre ficção científica e ensaio filosófico, Quem Cuida do Jardim convida-nos a questionar os caminhos que nos trouxeram até aqui e a perguntar: ainda há esperança?
Inspirada na sugestão enigmática de Cândido ou o Optimismo, de Voltaire — “temos que cuidar do nosso jardim” —, a peça reflete sobre o que significa, afinal, cuidar. Cuidar do planeta, uns dos outros, do conhecimento que nos trouxe até aqui. No meio do colapso, o que ainda pode ser salvo?
Cristina Carvalhal conversou com a Agenda Porto sobre o espetáculo, as suas inspirações e o papel do teatro na sociedade atual.
Como surgiu a ideia para Quem Cuida do Jardim?
Nasceu de uma sensação de absurdo. Como é que chegámos aqui? Quis olhar para trás e perceber outras formas de organização que existiram. Estamos muito limitados por padrões de pensamento que já nem questionamos. A história que aprendemos é uma história de reis, guerras e poder, mas houve longos períodos de paz e sociedades onde a ajuda mútua era a base. Só que esses momentos são menos contados.
Fotografia do cartaz "Quem cuida do Jardim?" © Estelle Valente
O espetáculo fala do colapso da humanidade. Acredita que esse colapso já começou?
Sim, acho que sim. A extinção da humanidade já começou, tal como acontece com tantas espécies todos os dias. Só que não é uma coisa abrupta, é um declínio progressivo. Mas a peça também fala da possibilidade de outro caminho.
Essa esperança está na personagem criada em laboratório?
Ela pode ser uma esperança, mas também uma ameaça. É um ser humano geneticamente alterado para ter uma ética do cuidado, para escutar e acolher. Mas quando criamos algo que supostamente é melhor do que nós, estamos a repetir a história da segregação, da ideia de que há grupos superiores e inferiores. Isso nunca deu bons resultados.
O título vem de Cândido ou o Optimismo, de Voltaire. O que significa para si essa ideia de "cuidar do nosso jardim"?
O título vem dessa adaptação do Cândido ou o Optimismo, de Voltaire, que acaba com essa sugestão enigmática, “temos de cuidar do nosso jardim”. O que significa esse jardim? O planeta? As pessoas? A nossa casa? Acho que é uma pergunta que o espetáculo levanta. Como é que cuidamos, realmente?
Cristina Carvalhal © Rui Meireles
O espetáculo mistura história, filosofia e ficção científica. Como equilibrou esses elementos?
A estrutura da peça funciona como um sonho de uma das personagens. Há momentos de reflexão, há visitas de figuras do passado que aparecem quase como fantasmas, há um cruzamento entre factos históricos e ficção. Tudo misturado. Esta personagem sonha que vai pelas localidades à procura dos sobreviventes de cada cidade seguindo a filosofia que os nossos sonhos são desejos da alma e é preciso concretizá-los, é preciso experimentá-los; por isso, de alguma forma, isto é um sonho que está a ser concretizado.
Que reações tem sentido do público?
As pessoas surpreendem-se com algumas coisas. E isso é bom. O teatro tem esse papel de nos fazer pensar sobre coisas que damos como garantidas.
E o que espera do Porto?
As pessoas são muito acolhedoras, a cidade tem um ritmo diferente e eu gosto muito. Há outro cuidado, até no simples gesto de servir um café. Acho que gosto muito da forma como se pensa aqui, como se faz também.
E o teatro tem força para provocar mudanças na sociedade?
Sempre teve. Desde a Grécia Antiga que o teatro reflete sobre os destinos da cidade, os limites, os medos do tempo em que é feito. E hoje continua a ser um espaço de reflexão coletiva.
O que mais a marcou na pesquisa para este espetáculo?
Acho que fui à procura de uma resposta para a pergunta "como chegámos aqui?" E percebi que talvez não haja uma resposta única. Mas se conseguirmos entender os padrões em que estamos presos, talvez possamos imaginar algo diferente.
Ainda há esperança?
Alguns dias acho que sim. Outros, acho que não.
"Quem cuida do Jardim?" © José Caldeira
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