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Quem conta o Porto acrescenta um ponto
Regina Guimarães: Entre palavras, imagens e gestos de criação
Entrevistas
Quem Conta o Porto - Regina Guimarães

Fomos ao encontro de Regina Guimarães, escritora, poetisa, dramaturga, letrista e criadora dos chamados “cadernos videográficos”. Em conjunto com o seu companheiro de vida, Saguenail, fundou a Hélastre que, mais do que uma produtora, é um ponto de encontro para expor os seus trabalhos e dar vida aos projetos que decidem tornar públicos.

“No princípio está a poesia”, reflete Regina. “Nasci numa casa onde havia uma biblioteca enorme. O meu pai valorizava muito os livros e a pintura. Ele próprio escrevia, e a escrita sempre foi importante na casa onde cresci.” Ainda sem saber escrever, ditou à mãe o seu primeiro texto, inspirado por uma visita a um atelier de pintura. “Disse: ‘Ó mãe, escreve! Ver alguém a pintar foi uma experiência muito impressionante para mim’.”


A escrita acompanhou-a desde então, mas cedo se entrelaçou com o contexto político. “Nasci no final da ditadura fascista. Ainda no liceu, muito nova, e de forma talvez pueril, mas muito sincera, senti a necessidade de aderir aos movimentos que pretendiam mudar o mundo.” Esse ativismo foi marcado por pessoas e experiências que a ensinaram a valorizar o rigor e a leitura crítica. “Tive a sorte de ter uma professora de Língua Francesa e de Português extraordinária. Ela ensinou-me muito sobre autoexigência e sobre a leitura de textos, mesmo num contexto adverso.” E este, como salienta, “foi sempre um fio que se foi atravessando” na sua vida.

Quem Conta o Porto - Regina Guimarães

© Inês Aleixo

Quem Conta o Porto - Regina Guimarães

Pintura de Regina Guimarães

“A pintura chegou também através do meu pai. Havia muitos pintores que frequentavam a casa da minha família, e graças a isso eu nunca deixei de desenhar. O desenho é uma ligação do cérebro à mão que eu acho que é constitutiva da parte mais digna do ser humano. Eu desenho porque isso é bom para mim, para me manter conectada com a realidade”, defende.


O gosto pelos trabalhos manuais foi crescendo e ganhando novas formas de expressão ao longo do tempo. “Recentemente, comecei a fazer tapetes, com reaproveitamento de materiais de plástico, e a bordar. A minha mãe quando me viu a bordar ficou muito admirada. Eu sempre fui avessa a todos os trabalhos de agulha, talvez porque, de alguma forma, estes trabalhos eram representativos da submissão da mulher. Por outro lado, percebi que o ato de bordar, a infinidade de pontos que é preciso dar, é uma aprendizagem de modéstia e também de alguma distração. Comecei quando deixei de fumar, funciona um bocado como mantra. Liberta espaço no cérebro para o devaneio, para o sonho acordado.”

“O cinema ensina a olhar para as coisas”


A ligação ao cinema surgiu da convivência com Saguenail, seu companheiro. “Não faço cinema, mas crio algo que chamo de cadernos videográficos. A chegada do vídeo permitiu-me uma relação mais imediata, algo diferente do cinema em película.” Juntos, criaram a Hélastre, que Regina descreve como uma entidade peculiar. “A Hélastre não é uma produtora como as outras. Foi criada para gerir os recursos dos nossos filmes, mas pontualmente também apadrinha projetos de amigos em casos de grande solidariedade.”


Essa relação com o cinema expandiu-se para o cineclubismo, uma atividade que reflete a paixão de ambos por partilhar o olhar sobre filmes. “Ser cineasta não é só fazer filmes. É dar a ver os filmes dos outros, trazer as pessoas para o cinema e valorizá-lo. Organizámos cineclubes durante 12 anos em Serralves e, mais recentemente, retomámos essa experiência na Casa Manoel de Oliveira. Mas também fazemos cineclubes mais pequenos e, às vezes, menos divulgados.”


Regina acredita que o cinema é uma arte coletiva que transforma. “Enquanto espectadores, nós não somos apenas pessoas que vemos filmes, mas pessoas que são vistas pelos filmes. Os filmes visitam-nos, os livros também, mas o cinema é mais imediato. Quando as pessoas perdem o medo de falar sobre cinema, percebem que os filmes despertam perguntas sobre elas próprias que nunca tinham considerado e sobre o mundo. O cinema ensina a olhar para as coisas, a ampliar a perceção sensorial, emocional e intelectual. E isso é muito bonito.”

Quem Conta o Porto - Regina Guimarães

Saguenail e Regina Guimarães

Quem Conta o Porto - Regina Guimarães

© Inês Aleixo

O Porto e os seus cadernos


Para Regina, o Porto é um espaço essencial na sua criação. “Os passeios pela cidade, com o chão quadriculado, são o meu primeiro caderno videográfico: olhar para o chão. Durante o confinamento, fiquei fascinada ao ver as plantas romperem o cimento. Estas pequenas coisas são as minhas florestas.”


Apesar da relação íntima com a cidade, lamenta as mudanças causadas pela gentrificação. “Não tenho nada contra os turistas, nós somos turistas noutros lugares. Mas este modelo apagou coisas que faziam do Porto um lugar único. Lembro-me de lisboetas que vinham ao Porto comprar coisas que já não havia no centro de Lisboa há muito tempo. E agora já não há aqui também. Hoje para comprar um prego, quase que é preciso ir ao Leroy Merlin, e isso é triste.” Mesmo assim, Regina mantém a esperança. “O Porto sempre foi um lugar de partidas e chegadas. Isso continua a ser a sua essência.”

Ainda há esperança e o desejo de contribuir para um mundo melhor


Nas suas perspetivas futuras, Regina pretende escrever “um discurso eficaz” contra a guerra. “Tem de haver força do pensamento para varrer isto. Perceber que isto é uma coisa absolutamente insuportável. Isto tira-me o sono. Eu não acho normal que as pessoas achem ‘porreiro’ enchermo-nos de armas até aos dentes. Quando penso que há pessoas a apanharem com bombas em cima… falta-me a respiração.”


Regina é crítica no que respeita às pressões impostas pela sociedade contemporânea. “A ideia de progresso falseia tudo. A vida não é um processo evolutivo. Há momentos duros e perdas terríveis, mas também há momentos bons que surgem depois. O maior desafio é lutar contra a amargura. Há sempre um lugar para a tristeza na vida, mas a tristeza pode ser um caminho para a amargura. A amargura é um baixar dos braços, e nós não temos esse direito.” Essa visão alimenta-se de projetos que promovem mudança, incluindo o trabalho com pessoas em situação de fechamento. “Trabalhar com pessoas em prisões é uma experiência gratificante. Estas pessoas, consideradas más, são iguais a nós. Temos tanto a aprender nesse universo.”

Quem Conta o Porto - Regina Guimarães

Bordado de Regina Guimarães

A esperança, para Regina, está no trabalho. “O trabalho é a minha bicicleta. É ele que me dá energia. E também os amigos, os filhos e os netos. É isso que me mantém conectada à vida.”

por Maria Bastos

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