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Victor Hugo Pontes © Estelle Valente
Nos dias 23 e 24 de abril, o palco do Teatro Municipal do Porto – Rivoli recebe Os Gigantes, a mais recente criação de Victor Hugo Pontes, em colaboração com a companhia Dançando com a Diferença, em estreia no DDD – Festival Dias da Dança. “É uma montra do que se faz cá e lá fora, um lugar de partilha e crescimento. Tenho orgulho em fazer parte desta história”, diz sobre o festival.
Natural de Guimarães e com o Porto como casa e abrigo, o coreógrafo e encenador não esconde o desejo de trazer este espetáculo à cidade onde se formou, entre as artes plásticas e as artes performativas. “O teatro é o lugar do sonho; o sonho é o lugar das possibilidades. E o teatro é exatamente isso – um lugar onde podemos ser quem quisermos, como quisermos.”
Se o Porto continua a ser porto de abrigo, também é um espaço de transformação – nem sempre fácil. “Há trinta anos, quando cheguei, o Porto era outra cidade. Mais autêntico, cheio de pequenos comércios e rostos familiares. Hoje, chego ao Porto e já não reconheço o lugar, porque as pessoas já não são as mesmas que estão a trabalhar nos cafés, o pequeno comércio a fechar, comecei a encontrar um Porto muito mais cosmopolita, mas ao mesmo tempo menos identitário.”
Ainda assim, é na cidade e na sua comunidade artística que encontra o impulso para criar. “Há cada vez mais criadores a fixarem-se no Porto. Pessoas que vêm de outros lugares do país para trabalhar, e ficam. Porque sentem que a comunidade da dança no Porto é muito mais pujante do que noutros lugares. Isso diz muito da energia que esta cidade tem. O DDD ajudou a consolidar isso. Há programadores de toda a Europa que vêm cá ver o que se faz. É um privilégio poder apresentar um espetáculo neste contexto.”
Inspirado em Os Gigantes da Montanha, de Luigi Pirandello – uma peça que ficou por terminar –, o espetáculo chega como um sonho coletivo, onde realidade e fantasia se misturam. “Para trabalhar com esta companhia específica, senti que precisava de criar um imaginário coletivo”, conta Victor Hugo Pontes. “Seria muito mais fácil trabalhar com estes intérpretes a partir do momento em que tivessem uma narrativa, ou uma história sobre a qual pudessem trabalhar, do que a partir de um conceito mais abstrato.”
Ao escolher Pirandello, Victor Hugo não procurou apenas um texto, mas um universo onde os intérpretes pudessem entrar e habitar. “Escolhi este texto logo pela primeira didascália da peça, que diz: ‘tempo e lugar indeterminados, no limite entre a fantasia e a realidade’. E acho que o lugar que estes intérpretes habitam, como seres humanos, é esse – entre a sua realidade e a nossa realidade.”
Os Gigantes © Paulo Pimenta
Inspira-se, sobretudo, nos jogos e atmosferas sugeridos por essas didascálias para gerar ação. “Interessou-me focar mais nos azarados, nestas personagens que são pessoas não normativas ou com deficiência, que são postas de parte na sociedade. Trabalhar a partir destas dinâmicas, deste quotidiano em que vivem isolados, à espera que alguém chegue.”
Mas a inspiração não vem apenas das palavras do dramaturgo italiano. Surge também de um encontro improvável: À Espera de Godot, de Samuel Beckett, cruza-se com Os Gigantes da Montanha nesta criação. “Às vezes, sinto que há uma linha invisível entre estes dois universos: personagens que esperam por alguém que nunca chega, azarados que vivem à margem, à espera de uma salvação que não vem.”
Da margem para o centro
Os Gigantes © Paulo Pimenta
Com a Companhia Dançando com a Diferença, o desafio vai além da criação coreográfica. É um encontro entre corpos e histórias, entre margens e centros. “Interessa-me trabalhar com quem está à margem, trazer essas margens para o centro. Estes intérpretes surpreendem-me sempre. São espontâneos, genuínos, imprevisíveis. Às vezes, o que eles fazem em cena é algo que nós, intérpretes normativos, passamos anos a tentar alcançar.”
No processo criativo, é preciso disponibilidade e escuta. “Tenho de perceber o que eles querem dizer, e nem sempre é fácil. Alguns não verbalizam, mas comunicam de outras formas, intensas e diretas. Quando gostam de ti, abraçam-te, beijam-te, fazem-te festas. Quando não gostam... também se percebe. E é nessa honestidade que reside a beleza deste trabalho.”
No centro deste espetáculo está também a ideia de incompletude. Tal como Pirandello deixou a sua peça por terminar, Victor Hugo abraça essa incerteza. “Pirandello coloca essa questão: o que inspira o próprio teatro? É a vida? É o teatro? O que vemos em cima do palco é realidade, ficção ou representação? Estão a ser eles próprios ou a interpretar personagens? O espetáculo tenderá a deambular muito em cima desses conceitos.”
“Interessa-me mostrar que realidade é esta, como é que nós somos como pessoas, como é que nos relacionamos uns com os outros, como é que aceitamos o outro, como é que aceitamos a diferença, como é que somos diferentes todos uns dos outros, como é que as margens podem estar no centro e não excluídas, por isso é que me interessa muito mais esta dança humana; quando digo humana é que em cima do palco seja um reflexo do que é o mundo”, acrescenta.
Os Gigantes © Paulo Pimenta
Espontaneidade e descobertas
Trabalhar com intérpretes com deficiência é, para Victor Hugo Pontes, um desafio exigente e profundamente enriquecedor. “Não basta dirigir. É preciso saber escutar, ter sensibilidade. É preciso tempo e paciência. É um diálogo constante, em que eu aprendo tanto quanto eles.”
O processo está cheio de episódios inesperados. “Lembro-me de um ensaio em que uma das intérpretes, ao ouvir o nome da personagem ‘Diamante’, achava que era ‘a amante’ de outro personagem. Eu disse-lhe: ‘Não, és a Diamante. Uma pedra preciosa.’ Mas, para ela, era ‘a amante’... E isso faz parte do espetáculo, essa espontaneidade que não se pode fabricar.”
Até o trabalho de figurinos, pensado em parceria com Pedro Azevedo, trouxe surpresas. “Trouxemos figurinos emprestados do Teatro Nacional São João, convencidos de que sabíamos o que cada um iria vestir. Foi muito curioso vê-los escolher peças que nunca imaginaríamos para eles. Rapazes a quererem vestir figurinos das raparigas... Foi muito bonito, porque eles quebram preconceitos que, na verdade, nós é que temos na cabeça.”
No palco, há espaço para a surpresa, mas também para o rigor. “Eles são incrivelmente profissionais. Fizemos apresentações abertas, e houve programadores que assistiram a dois dias seguidos, porque achavam que podia mudar. Ficaram espantados: eles repetiram cada detalhe com precisão. Claro que existe sempre uma margem para o imprevisto, mas eles são mesmo muito rigorosos naquilo que fazem, apesar de às vezes parecer tudo espontâneo.”
A banda sonora do espetáculo está a ser criada pelos Throes + The Shine, num processo ainda em construção. “Convidei-os porque têm esse lado rítmico, pulsante, com influências africanas e um diálogo entre o rock e o kuduro. E percebi que o ritmo altera completamente a forma como os intérpretes se movem. O som é, para eles, impulso e liberdade.”
Quanto à sua própria identidade artística, Victor Hugo Pontes trabalha várias linguagens artísticas e isso sente-se nos espetáculos. "Comecei nas artes plásticas e no teatro. A dança veio depois. Hoje, não sei dizer se faço dança, teatro ou performance. Faço tudo isso junto. Tudo aquilo que fazemos é reflexo daquilo que somos.” E acrescenta: “As artes complementam-se. Isso é visível nos meus trabalhos. O mais visível por um lado tem que ver com o sentido do plástico e estético. Tenho muito cuidado com o lado visual e com aquilo que está em cena. Trabalho com pessoas que acrescentam ao meu trabalho, porque o trabalho não é feito sozinho. Há uma relação muito grande com a cenografia, que acho que vem do teatro. Na dança, normalmente não havia cenografia; agora começa a haver mais.”
Com Os Gigantes, o coreógrafo e encenador diz que “quer levantar questões”. “Não tenho respostas, quero partilhar dúvidas. O teatro é um lugar do sonho, das possibilidades. E eu acho que é muito bom ainda termos essa capacidade de sonhar. Porque a sonhar somos livres.”
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