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Quem conta o Porto acrescenta um ponto
O território de Mariana Correia Pinto
Entrevistas
QCP: Mariana Correira Pinto

Mariana Correia Pinto é jornalista do Público, onde desenvolve um trabalho de proximidade e profundidade na secção Local Porto. E não é abusivo afirmar que esse “local” tem nome — o território sentimental de sempre, o objeto de estudo e investigação, e a missão de cidadania são um: Campanhã. A freguesia é, aliás, o tema do livro que publicou, “Porto, última estação”.

É a Oriente que o sol nasce, por isso os seus primeiros raios são sempre para Campanhã. Mas esta é uma zona da cidade que, por vezes, parece desdobrar-se em sombras — entre pessoas que se escondem e problemas que são ocultados. O estatuto de periferia não é novo: encontra-se do lado de fora da grande artéria de acesso à cidade, possui um parque habitacional degradado, e é parco o estabelecimento de negócios e oportunidades.


A triangulação da relação de Mariana com Campanhã faz-se através de fronteiras. Nasce em Gondomar, junto à casa dos avós, mesmo junto à tal linha invisível onde Gondomar acaba e o Porto começa. Cresceu no Bonfim, cruzando para a freguesia vizinha para ir à escola. E, já no emprego, agarrava qualquer história que a pudesse trazer de volta à zona oriental.

QCP: Mariana Correira Pinto

© Nuno Miguel Coelho

E porquê esta dedicação? Tudo se resume ao pilar que conduz o seu trabalho jornalístico: “Eu quero contar as histórias das pessoas que não aparecem nos jornais. O que é que eu posso acrescentar que não está a ser dito?” No trabalho de redação, há muitos temas que são impostos por agenda, mas Mariana diz-nos que “sempre que via alguma coisa que me chamava mais ao coração, ia atrás. E isto depois é uma bola de neve, porque vais criando fontes naquela zona, num determinado território, e vais tornando esse o teu território primordial".

QCP: Mariana Correira Pinto

© Nuno Miguel Coelho

Ouvir com olhos de ver


Algumas dessas histórias estão inscritas na memória coletiva, como a do Bairro do Aleixo, em que foi possível ter o privilégio (e o luxo, face aos constrangimentos de uma redação atual) de passar seis meses em contacto próximo com os moradores, e descobrir as vidas que se viviam ali. Outras histórias são mais pequenas, como a de uma família que Mariana encontrou numa reunião de câmara do Porto. “Estavam absolutamente desesperados, iam ser despejados. Era uma família de um agregado grande, com várias crianças. E viviam em condições absolutamente miseráveis.”


Não tendo encontrado uma solução específica nessa reunião a não ser permanecerem na lista de espera para habitações sociais, Mariana fez o que pôde: “Vi um desespero tão grande naquelas pessoas que, quando acabou a reunião, eu fui atrás delas e perguntei se podia contar a sua história. E a história era, de facto, muito chocante. Porque viviam em condições que ninguém devia viver no século XXI. E saiu uma notícia. E depois fizemos outra.”

Com esta insistência, a Segurança Social acabou por rever o estatuto de prioridade desta família, e nessa sequência foi finalmente permitido à Câmara Municipal atribuir-lhes uma habitação condigna. “Eu não estou a dizer que nós fomos responsáveis por esta família ter uma casa. Eu acho que nós demos visibilidade ao caso, e mostramos as camadas que existiam ali que, de facto, os punha numa posição de ter uma casa. Isso foi há, talvez, cinco anos. E essas pessoas continuam a falar comigo quase todos os meses. Sentiram que fui eu que mudei a vida delas. E não fui.” Mariana é peremptória na recusa de alguma espécie de crédito, tal como é em classificar o seu trabalho de ativismo — “Eu não gosto da palavra ativismo porque muitas vezes é politizada. E há muito jornalismo ‘justiceiro’ que eu abomino. Eu não quero fazer isso, e a fronteira pode ser ténue.”

“A pobreza ‘vende’ muito bem. E isso é a última coisa que eu desejo fazer com o meu trabalho."

Há outra fronteira, porventura menos ténue, que Mariana se recusa a cruzar. Ao lidar com as pessoas cujas vidas retrata, tem muito cuidado com aquilo que expõe: “A pobreza ‘vende’ muito bem. E isso é a última coisa que eu desejo fazer com o meu trabalho. Eu não quero usar as pessoas para fazer um bom texto. Ou seja, a vida da pessoa está em primeiro lugar.” Um cuidado essencial, até porque é desigual o entendimento do impacto destas peças no entrevistador e no entrevistado. Em casos de traumas sociais, como na população sem-abrigo, a jornalista tenta sempre “proteger as pessoas”, e não “pegar na parte mais sangrenta da coisa como se fosse uma arma”.

Uma linha que rasga


Quando surge a oportunidade de escrever um livro pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, propõem-lhe que seja algo sobre o Porto. Nesse momento, a força gravítica de Campanhã pareceu inescapável. Estávamos em 2017, e os problemas de Campanhã eram conhecidos e reconhecidos. A figura da estação de caminhos de ferro, ponto de chegada de tanta migração operária para a cidade, emprestou o título de uma exploração “sobre o que foi a evolução de Campanhã ao longo do tempo, e de que forma é que a cidade se transformou nesta cidade partida, em rampa. Onde ao Ocidente chega tudo. E ao Oriente nada chega”.


O livro divide-se em quatro capítulos: um dedicado a José António Pinto (o “Chalana”), assistente social na Junta de Freguesia de Campanhã; outro tratando do caso do projeto do MIRA FORUM; o terceiro tomando a história de uma pessoa que nasceu dentro da própria estação de Campanhã; e, por fim, um capítulo com uma análise forense sobre como se instalou a pobreza nesta freguesia. Com o Espaço Mira (ler aqui reportagem da Agenda Porto sobre o espaço) surge de novo o tema da apropriação da pobreza por quem está de fora. “Alguns projetos artísticos servem-se muito das pessoas numa lógica sanguessuga. Mas também se faz muita arte com as comunidades que é absolutamente estruturante, e que transforma a vida das pessoas — há muitas companhias e muitas pessoas a fazê-la de forma muito interessante, como, por exemplo, a Visões Úteis. Mas há, também, quem faça isso servindo-se das comunidades. Numa lógica de aproveitarem o que podem das pessoas para fazer um grande trabalho, e depois ir embora e nunca mais voltar. E, provavelmente, a vida das pessoas fica pior do que estava antes.”

QCP: Mariana Correira Pinto

© Nuno Miguel Coelho

Mas nem tudo é sombrio. No livro, Mariana refere-se a Campanhã como a “terra da promessa”, pela longa sucessão de ideias de revigoramento que nunca chegaram à estação final. Contudo, admite que “neste momento vêem-se algumas coisas que fazem com que já não seja só o território da promessa. Há já alguma coisa a ser feita, como a reabilitação do Parque Oriental, por exemplo, ou alguns projetos de arrendamento acessível. Mesmo a reabilitação do Matadouro, não sendo o meu modelo preferencial, acho que vai fazer algo por este território”.


Mariana atravessa agora um momento de transição. Em licença sabática do emprego de jornalista, está a trabalhar naquela que é já a segunda peça de teatro que escreve, fruto de uma bolsa conquistada na DGLAB (Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas). Pelo caminho, houve tempo até para a escrita de uma peça de teatro. Mas a missão de cidadania não ficará pelo caminho: “Eu gostava muito que a minha filha vivesse num país mais livre ainda do que aquele onde eu cresci e, para isso, acho que o jornalismo é muito importante.”

por Ricardo Alves

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