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Quem conta o Porto acrescenta um ponto
O censo dos invisíveis de José Sérgio
Entrevistas
QCP: José Sérgio

Quando nos sentamos a conversar com José Sérgio, há já um objeto a ser folheado sobre a mesa. Mesmo quando falamos do percurso do fotojornalista, dos inícios de cada coisa sua, já há retratos no palco entre duas chávenas de café. Presentes! — assim mesmo, com ponto de exclamação — é um livro de retratos da comunidade africana e afrodescendente do Porto. É uma recolha extensa, uma prova viva que pretende negar o chavão habitual de que o Porto é uma cidade com poucas pessoas negras.

Começando por um dos muitos inícios, José Sérgio descobre a fotografia com o teatro, em Maputo. Procurou na Associação Cultural Casa Velha um veículo de exploração do teatro amador, mas ali encontrou algumas câmaras fotográficas ao abandono. “Tinha laboratórios e máquinas espetaculares, quase como novos, mas fazia-me confusão por que não estavam a ser usadas — até que percebi que não havia película, não havia químicos para a revelação, não havia material de consumo.”


A muito custo, começou as experiências em fotografia pagando do próprio bolso os materiais e partindo para a construção de um portefólio que veio a apresentar no Jornal de Notícias de Maputo. Aí, surge a oportunidade de ter a contracapa do semanário desportivo Desafio, com uma meia-página para uma fotografia por semana. “A verdade é que me correu bem; ninguém me impunha nada. Era o que me vinha à cabeça, e eu ia atrás de todos os desportos — menos do futebol.”

QCP: José Sérgio

© Nuno Miguel Coelho

A fotografia não deixa de acontecer desde então — mesmo durante uma breve pausa em que trabalha com os Médicos sem Fronteiras, encontra forma de fazer fotografia. E é como freelancer que chega a Portugal, mais uma vez carregando um portefólio e levando-o a jornais. Recém-chegado a Lisboa, e ainda sem conhecer os cantos à casa, repara que na Praça do Marquês se encontram as redações do Diário de Notícias e do Expresso.


Esse é apenas o primeiro de vários acasos em cadeia: ao chegar à Praça do Marquês, apenas consegue lugar para estacionar junto ao Expresso, sendo, portanto, a primeira paragem. Uma vez chegado, na receção confundem-no com alguém esperado para uma entrevista, sendo encaminhado para um piso onde se encontrava a redação do semanário musical Blitz. “Eu nem percebi bem como tinha chegado ali, e no Blitz também não estavam de todo à minha espera." No meio da confusão, e apesar de não estarem na altura à procura de um fotojornalista, o diretor do Blitz pede-lhe para deixar com ele o portefólio. Sem mais cópias para levar a outras redações, nada restava senão passear por Lisboa e aguardar uma chamada. A chamada veio, e começa aí o percurso em Portugal. Primeiro no Blitz, depois no semanário Sol, e finalmente no formato que mais aprecia: o de freelancer.

QCP: José Sérgio

Presentes! — Africanos e Afro-descendentes no Porto, © José Sérgio

QCP: José Sérgio

© Nuno Miguel Coelho

Livre no Porto


É como freelancer que chega ao Porto. E o que o trouxe ao Porto vem a definir a forma como encara a cidade. José mudou-se para aqui por amor, e embora já conhecesse a cidade, a verdade é que redescobri-la enquanto apaixonado por uma portuense fez com que, inevitavelmente, se apaixonasse pelo Porto também.


E as sementes de Presentes! espalham-se logo no primeiro encontro. Vindo de uma capital onde a comunidade negra está instalada em zonas específicas, aqui no Porto encontra uma comunidade dispersa. Uma comunidade, também, que não se encontrava muito nos espaços de convívio. “Em vários momentos, sentia-me o único africano no sítio onde estava. Perguntava às pessoas, e a resposta era sempre a mesma: ‘em Lisboa há muitos, aqui não há tantos’.” Um truísmo que José via negado todos os dias. Andando pela rua, usando os transportes públicos, nas compras. Estes africanos “invisíveis” existiam de verdade, e surgiu a ideia de começar a encontrá-los e torná-los evidentes para aqueles a quem eles não o eram. Nem que fosse um por um.

Começou, então, a abordar africanos que encontrava na rua. Começava sempre com uma conversa, só num segundo momento partindo para um retrato. Sempre pretendeu que os retratos fossem uma construção dos dois, de fotógrafo e de retratado. E, no momento do retrato, José apercebeu-se de uma falácia sua: costumava dirigir os seus atores com a sugestão de “se quisesses mandar um retrato para a terra, como gostavas de ser visto?”.


Funcionou com a primeira pessoa, mas não com a segunda porque a terra dessa pessoa, tal como a de outras retratadas, é o Porto, onde têm toda a família e amigos. Daí o essencial subtítulo Presentes! — Africanos e afrodescendentes no Porto. Este é um livro que tem permitido a José ampla oportunidade para valorizar esta camada “invisibilizada” da população portuense — mas esse livro é apenas uma fase de um longo projeto que iniciou com uma exposição no Espaço Mira. E tendo em conta o extenso material de entrevistas e retratos acumulado por José, é um projeto que tem ainda caminho por fazer. Tanto mais não seja porque um censo nunca acaba realmente. Ou, pelo menos, não acaba enquanto durar a ideia de que o Porto é uma cidade com poucas pessoas negras.

QCP: José Sérgio

Presentes! — Africanos e Afro-descendentes no Porto, © José Sérgio

por Ricardo Alves

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