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Quem conta o Porto acrescenta um ponto
José da Cruz Santos, o prodigioso criador de livros
Entrevistas
José da Cruz Santos, o prodigioso criador de livros

Miguel Veiga chamou-o “prodigioso criador de livros”. É impossível falar-se da história da edição em Portugal sem falar de José da Cruz Santos.

Nascido no Porto, em 1936, este editor, livreiro e alfarrabista nunca gostou de aparecer — nem sequer nas apresentações dos livros por ele editados. “Eu nunca estou em lado nenhum”, diz. Com os anos, tornou-se ainda mais avesso a aparições públicas, mas isso não significa que tenha deixado de acicatar e promover homenagens a autores que aprecia ou de quem foi amigo.


Cruz Santos é tão discreto quanto gentil. “Não quer dizer que não me interesso pelas coisas. Ainda agora, estou na origem de coisas feitas para lembrar o Vasco Graça Moura; quando é para lembrar alguém que admiro, continuo disponível”, conta, referindo-se à mesa-redonda “Em torno de Modo Mudando”, que aconteceu, a 4 de dezembro, na Casa dos Livros da Universidade do Porto, para assinalar os 60 anos da edição do primeiro livro de poesia de Graça Moura. “Fui eu que sugeri, fiquei contente por fazerem esta espécie de evocação, recordar o amigo.”

Mas recuemos ao princípio, ao tempo em que José ainda estava a aprender a juntar as letras. “Enquanto não chegava a idade de entrar para a escola primária, às vezes os pais colocavam os miúdos em casa de umas senhoras já idosas, solteironas ou viúvas, que tomavam conta deles e fingiam que lhes ensinavam alguma coisa. Devo ter encontrado aí a paixão que seria para toda a vida: os livros.”


Das leituras na adolescência recorda as revistas de BD Mosquito. “Foi nesse jornal de aventuras, de histórias aos quadradinhos, que aprendi a ler e a estar sempre do lado dos humilhados e ofendidos. Dos perseguidos. Dos que têm fome.” Garante que ainda hoje é assim. “Se vir o letreiro que está no vidro, vai ver que isso continua”, diz, aludindo ao papel afixado na montra da sua livraria, Modo de Ler, intitulado “A Palestina”, com um texto pequenino de José Saramago.  

José da Cruz Santos, o prodigioso criador de livros

Capa de 1936 da revista O Mosquito, © DR

Revela que, em criança, muitas vezes escondia dos pais a paixão pela leitura por lhe roubar horas ao estudo, mas ainda hoje duvida de que tivesse sido mais importante para a sua formação “resolver uma questão a duas incógnitas ou saber o símbolo químico do chumbo do que viver o momento em que D’Artagnan, Atos, Portos e Aramis iniciaram uma amizade para a toda a vida. E sei hoje que a amizade é o mais belo lugar da terra”. – Porque a Amizade é o Mais Belo Lugar da Terra é, precisamente, o título do livro que dedicou aos amigos Luís Telles de Abreu, Miguel Veiga e Vasco Graça Moura.


Diz que foi Amadeu Cordeiro Marinho, que tinha uma pequena livraria de livros raros na Rua de Fernandes Tomás, quem instigou nele o gosto pela leitura. “Talvez o meu percurso como leitor tivesse sido diferente, mais pobre, se ao sair da minha infância não tivesse conhecido um alfarrabista admirável, um pedagogo nato, que soube despertar em mim a curiosidade para livros e autores que marcaram a minha juventude. Esse homem não tinha menos respeito pelo miúdo que lhe entrava na livraria a perguntar se tinha Cavaleiros Andantes (outro jornal aos quadradinhos) do que pelo adulto que lhe perguntasse pela Ilíada ou pela Política, de Aristóteles. O cidadão não quer folhear esta obra?, perguntava.”

Não sabe quando começou a pensar que gostaria de trabalhar numa editora, mas lembra-se que “detestava o curso que frequentava à noite e os empregos que ia arranjando”. E o que é preciso para se ser um bom editor? Responde-nos com os ensinamentos de Gaston Gallimard, fundador das Éditions Gallimard. “O grande editor francês Gallimard ensinava que o verdadeiro editor é aquele que procura publicar um livro que ele próprio gostava de encontrar como leitor.”

Um homem que gosta de glicínias e de livros


O amigo Graça Moura condensou num poema a biografia de José: “Um homem gostava de glicínias, de ver, de respirar/ o seu arabesco perfumado pelas tardes de verão./ E também gostava de palavras, do modo como elas/ se afirmam contra a morte. E das palavras fez/ a sua catedral (…) e hoje vemos isto: um homem, o seu trabalho,/ e a sua sóbria dignidade/ de amigo simples das palavras e das glicínias,/ dando a mão aos amigos e a dizer-lhes calmamente:/ sim, esta é a minha vida.”

José da Cruz Santos, o prodigioso criador de livros

A edição de Aparição de Virgílio Ferreira, editada por José Cruz Santos e com ilustrações de Júlio Resende, © DR

A vida de Cruz Santos fez-se à volta dos livros e é sobre eles que gosta de conversar. Aponta como livros fundamentais da sua vida, e aqueles que terá lido mais vezes, O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë, e C., de Maurice Baring, que foi editado por ele, na Portugália, onde começou a trabalhar no início dos anos 60. “Foi magnificamente traduzido por Cabral de Nascimento, um grande poeta”, ressalva. “O autor escreveu o livro para mim”, afirma, embora não saiba o que o torna tão especial. “Ofereci esse livro a amigos que gostam muito de ler para ver se me ajudavam a perceber o porquê de eu gostar muito do livro, mas nenhum deles me falou mais disso.”


Depois de passar pela Portugália, em Lisboa, Cruz Santos regressa ao Porto para fundar a Inova, em 1967. A obra que marcará esta transição, e que sai com dupla chancela, é uma edição especial do romance Aparição, de Vergílio Ferreira, ilustrada por Júlio Resende e acondicionada numa caixa, destinada a comemorar os 25 anos de vida literária do autor. Venceu o primeiro prémio na Bienal de S. Paulo. “Estou certo de que nasci para ser editor, para inventar livros, ou, como dizia o escritor Vergílio Ferreira, para criar um livro a partir de tudo, mas como se nada houvesse. Ele disse isso quando viu a edição que fiz do seu livro Aparição. O livro já existia, mas passou a existir de outra maneira”, conta. 

Uma marca das edições de Cruz Santos, sobretudo as de poesia, é a presença de ilustrações de artistas plásticos. “Em poesia foi sempre. Em todos os livros de poesia que publiquei, desde o primeiro, houve sempre a preocupação de um artista plástico colaborar. Nos mais de 380 livros que publiquei, houve sempre um artista plástico, às vezes era mais do que um.” [risos]


Cruz Santos será, talvez, o editor português que mais livros de poesia publicou. E para que serve, afinal, a poesia? “É muito fácil de responder. Uma vez, um cliente que não gostava de poesia perguntou-me mesmo assim, com toda a franqueza, para que serve a poesia. E eu respondi: — O senhor conhece a Rua das Flores? — Conheço. — Passa lá às vezes? — Passo, passo. — Nunca reparou — agora já nem tanto, isto passou-se há uns anos — que, na Rua das Flores, muitas das varandas têm sardinheiras? E nunca perguntou a si próprio porque é que as pessoas põem as sardinheiras nas janelas? Porque é preciso beleza. É uma forma de acrescentar beleza ao lugar onde estão, isso é poesia.”


“O sol aquece até ao futuro”


A caminho dos 90 anos, Cruz Santos continua o seu percurso enquanto editor. “Tenho duas ou três coisas em andamento; devem sair dois livrinhos em breve… Há uma obra muito importante, que está pronta, sobre Lisboa. O Vasco Graça Moura, antes de morrer, deixou pronta uma antologia sobre Lisboa [à semelhança das antologias de prosa e verso sobre o Porto, Daqui Houve Nome Portugal (1968), e sobre Coimbra, Memórias de Alegria (1971), ambas da autoria de Eugénio de Andrade]. Eu gosto imenso de Lisboa, e então eu queria fazer isso. Eu pedi ao Vasco Graça Moura porque o Eugénio já não estava em condições para fazer. A obra está pronta à espera de um patrocinador que resolva apoiar a edição.”


Lisboa e Porto: No coração do editor, a estrada é curta


“Eu não entendo que haja pessoas que só porque gostam muito do Porto não gostam de Lisboa. Só porque gostam do Porto. Porquê? As pessoas que gostam de uma coisa não podem gostar de outra? Se eu não gostasse do Porto como gosto, com as limitações que eu possa atribuir ao Porto, não tinha feito as edições que fiz sobre o Porto. E quando faço uma digo sempre que é a última, mas acabo sempre por fazer mais uma.”

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por Gina Macedo

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