PT

EN
Reportagem
Heróis da banda desenhada
Herois de BD mar 2025

Há quem aponte as origens das narrativas em imagens sequenciais para algumas pinturas rupestres pré-históricas. Numa interpretação mais estrita, a banda desenhada emerge a partir dos cartoons satíricos numa Europa pós-Gutenberg – continente onde ao longo dos séculos se foi apurando a escola franco-belga, uma corrente estética que hoje convive com duas outras da mesma escala global: os comics americanos e o manga japonês. Fomos falar com quem no Porto é fiel aos quadradinhos – desde quem cria neste formato (coletivo Goteira e Rudolfo da Silva), quem o traz ao público (Mundo Fantasma e Timtim por Timtim) e quem preserva a sua memória (Bedeteca).

A antologia do futuro do coletivo Goteira

“Goteira” é o termo usado para descrever as margens interiores das páginas de um livro, um espaço de pouco aproveitamento por estar no abismo da dobra. Mas é uma palavra também usada para descrever os espaços entre vinhetas na banda desenhada – mas, mais do que um termo técnico, este coletivo viu na palavra, segundo Biakosta, uma leitura de “aproveitar o espaço que está nas margens”. O coletivo foi fundado por Biakosta, Rita Mota e Margarida Ferreira – todas ex-alunas da Faculdade de Belas Artes do Porto, cujas carreiras as levaram em direções opostas.


A motivação para a criação do coletivo Goteira era a de ser um projeto artístico que as fosse capaz de reunir de novo. Embora todas tivessem atividade na ilustração e animação, era a banda desenhada que parecia estar a reunir um entusiasmo crescente entre as fundadoras. “Não há muitos momentos em que seja possível juntar pessoas para falar de banda desenhada, com exceção das feiras de ilustração, que juntam muito os artistas do meio”, aponta Rita. Assim, a fundação do coletivo surge como uma forma de instituir um clube de discussão de banda desenhada – mas desde cedo havia a ambição de uma materialização mais palpável: “nós já queríamos fazer uma antologia de banda desenhada – com trabalho de nós as três, mas também com artistas convidados. Apenas não nos queríamos colocar na posição de convidarmos pessoas a cederem trabalho a troco de nada”, relembra Bia.

Herois de BD mar 2025

© Guilherme Costa Oliveira

Herois de BD mar 2025

© Guilherme Costa Oliveira

É neste contexto que surge como catalisador o Criatório, o programa municipal de apoio à criação artística, levando-as a uma candidatura para a produção de uma antologia de banda desenhada. Com o sucesso desta candidatura, abrem a open call para artistas no início do ano passado, da qual resulta o livro “Quem É Que Tu Pensas Que És?”, que conta com obras inéditas de 12 artistas.


Sobre o título, Margarida descodifica um significado simultaneamente figurativo e literal: “estes 12 artistas foram convidados a dissertar sobre identidade e a sua própria noção de eu, mas também questiona sobre o que eles acham que faz deles criadores de banda desenhada – quem é que tu achas que és para estares a fazer banda desenhada?”

Para além desta antologia de novos criadores em banda desenhada, o coletivo Goteira organiza encontros irregulares do Clube do Livro de BD, um grupo de discussão deste formato visual. Contando já com cinco edições, a frequência dos encontros é incerta – acontece quando os astros se alinham, mas também quando há um gancho: “normalmente escolhemos um livro, reunimos entre nós para debater os pontos interessantes a falar sobre ele, ou sobre o contexto do autor, para depois termos pano para mangas para a conversa”, descreve Margarida. “Mas também temos experimentado fazer coisas diferentes – já tivemos uma sessão que era de leitura coletiva de uma história curta em que cada pessoa lia uma vinheta diferente, já tivemos uma sessão em que cada pessoa trazia um livro que gostasse para apresentar às outras pessoas, e já tivemos um autor convidado a mostrar o seu trabalho”. Quanto ao local, esse nunca varia: as sessões têm sempre lugar na Bedeteca.

Herois de BD mar 2025

© Inês Aleixo

A Bedeteca contra-ataca

É numa loja do centro comercial Brasília, entre os corredores que bifurcam em diversos ângulos, que encontramos as instalações da Bedeteca. Este espaço foi inaugurado no início do ano passado, mas a Bedeteca considera-o apenas o seu segundo ato. Isto porque a história da Bedeteca em si está intimamente ligada ao percurso da banda desenhada no Porto. O primeiro passo começa nos anos 80 com a Comissão de Jovens de Ramalde e o fanzine “Comicarte”, conforme nos recorda Júlio Moreira, membro da atual direção e já presente na estrutura desde os anos 90.


“Eu estava mais ligado ao núcleo de cinema do Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, mas conhecia o Paulo Amorim e o Pedro Cleto, da “Comicarte”, que, entretanto, começou a organizar um salão de fanzines e BD”, recorda Júlio Moreira. O Salão BD, que se tornou uma referência nacional e conquistou como lugar habitual o Mercado Ferreira Borges, é uma memória ainda muito presente nos aficionados da banda desenhada. É também o motor que leva Júlio a assumir uma ligação ainda maior ao formato. "Em 1992, o Paulo Amorim teve de escolher entre a carreira em medicina ou o Salão BD; e, assim, eu, o José Rui Fernandes, que é dono da loja Mundo Fantasma, o Pedro Petracchi [que hoje integra também a direção da Bedeteca] e mais algumas pessoas pegámos no salão, demos-lhe a volta, e mantivemo-lo em funcionamento até ao ano de 2001”.

Herois de BD mar 2025

Júlio Moreira © Inês Aleixo

Herois de BD mar 2025

Fernando Pau-Preto © Inês Aleixo

Pelo caminho, o acervo que a Comissão de Jovens de Ramalde ia acumulando ganhou corpo com a ideia de uma Bedeteca que, além da preservação deste arquivo material, tivesse como missão a defesa e a divulgação da banda desenhada. Quase trinta anos depois, a missão mantém-se imutável no renascimento do projeto da Bedeteca, enquanto a vertente do acervo pretende transformar-se cada vez mais: “O acervo inicial é um acervo dos anos 80 e 90, mas nós já começámos a obter várias doações, quer de editoras nacionais, com quem já pedimos colaboração, quer com privados – já chegámos a receber uma coleção inteira de uma pessoa dos Açores!”


Neste momento, uma das atividades mais regulares da Bedeteca é o Mercado do Contra, também organizado por Fernando Pau-Preto, outro membro da direção atual, que sublinha que, além de feira de autoedições em banda desenhada, este mercado “tem vindo a trazer autores de referência, portugueses, mas com trabalhos editados para as grandes editoras, como a DC Comics e a Marvel”. “Já tivemos cá o Jorge Coelho e o André Lima Araújo”, acrescenta. Também organizam visitas guiadas a exposições, e recebem os já mencionados encontros do coletivo Goteira. A intimidade com a loja Mundo Fantasma permite- lhes traçar um triângulo entre estes dois espaços (e as respetivas coleções) e o espaço expositivo integrado no espaço da Mundo Fantasma.

Fernando fala nos primeiros dois anos de atividade da Bedeteca (a cumprir daqui a um ano) como um período de “afirmação e consolidação”. Mas no fim desse período, Júlio defende que é necessário “fazer um balanço connosco e com a cidade”. Até lá, não deixa de realçar dois grandes trunfos — o de ter encontrado um grupo diverso de pessoas que colabora com a Bedeteca em regime voluntário, e um crescente número de “amigos da Bedeteca”, sócios com quota anual. Fernando identifica a questão das instalações como essencial: “estamos extremamente limitados no que toca a espaço, se queremos crescer. E poderá não ser um plano para curto prazo, mas temos a ambição de um dia ter a Casa da Banda Desenhada na cidade”. Contudo, Júlio não deixa de lembrar a triangulação feliz que têm no centro comercial Brasília: “aqui estamos perto do nosso único patrocinador privado, a loja Mundo Fantasma, e da Galeria que está inserida no espaço deles. Esta proximidade é muito importante para nós.” 

Herois de BD mar 2025

© Inês Aleixo

Os guardiões do portal para o Mundo Fantasma

A loja Mundo Fantasma é mais do que incontornável: é quase sinónimo de banda desenhada na cidade do Porto. Para isso, certamente, também contribui esta ser a maior loja da especialidade em Portugal. Mas a maior parte do prestígio da Mundo Fantasma vem das duas pessoas que recebem quem lá entra desde o final dos anos 90: Marco Novais e Vasco Carmo. Esta dupla consegue a proeza de ter as chaves para todo e qualquer nicho dentro da banda desenhada, mas simultaneamente não se comportarem como gatekeepers, afastando quem não está ainda iniciado nesta arte – funcionam, aliás, como pontos de entrada para neófitos na banda desenhada: muito dificilmente quem entra na loja não sai sem duas ou três recomendações feitas à medida.


Estes “algoritmos humanos” funcionam de uma maneira bastante orgânica, uma vez que o princípio básico é, segundo Vasco, “tratar os clientes como gostaria de ser ratado” – algo muito mais fácil de fazer quando quem está atrás do balcão poderia muito facilmente estar do outro lado, à procura de uma boa sugestão. Assumem-se ambos omnívoros culturais, mas Marco acrescenta que tem, “certamente, mais olhos que barriga”. “Mas uma biblioteca é um pouco como uma adega, não é preciso beber o vinho todo. E também dá algum prazer olhar para umas estantes bem cheias.”

Herois de BD mar 2025

© Inês Aleixo

Herois de BD mar 2025

© Inês Aleixo

Este abismo de haver mais livros do que tempo para os ler torna o serviço de recomendar obras aos clientes ainda mais necessário. “Se a pessoa tiver gostos semelhantes aos teus, isso ajuda muito porque estás a apresentar coisas que já leste e que gostas”, afirma Vasco. Apesar disso, juram que não repartem entre si a custódia dos clientes, nem fazem caça àqueles que gostariam de ter “em carteira”: “isso é uma coisa que acontece de forma bastante orgânica, até porque os clientes sentem-se sempre mais à-vontade para falar com quem tem gostos semelhantes.”


Este ano, a Mundo Fantasma celebra 30 anos de existência – originalmente instalada no centro comercial Parque Itália, mudou-se para o Brasília dois anos depois, onde permanece até hoje (embora com uma mudança recente de espaço de loja dentro do shopping). O ritmo mantém-se estável há algum tempo: a loja recebe a mítica “encomenda mensal” das grandes editoras, onde se incluem as novas edições das séries que os clientes subscrevem – e os clientes vão aparecendo para recolher as novidades, e dar duas de letra com o Marco e com o Vasco.

Como não queremos ficar de fora deste clube, pedimos a cada um uma recomendação para os leitores da Agenda Porto. Marco sugere “The Nice House on the Lake”, de James Tynion IV, porque “é um bom mistério, muito bem escrito”. “Consegue agarrar mesmo quem não está habituado a ler BD, e ganhou o título de Best New Series tanto nos prémios Eisner como no festival de Comics de Angoulême.” Já Vasco recomenda “The Legend of Kamui”, de Shirato Sanpei, um clássico que é simultaneamente uma novidade: “apesar de estar nos cânones da banda desenhada japonesa, isto ainda não tinha sido publicado no Ocidente na íntegra. E vai agora sair numa coleção de 10 volumes. Retrata uma época do Japão feudal; quem gosta de filmes do Akira Kurosawa vai achar isto genial."

Herois de BD mar 2025

© Rui Meireles

Para Rudolfo, tudo cabe na banda desenhada

Quem beneficiou das recomendações seminais de Vasco e Marco foi Rudolfo da Silva. Hoje, é um artista multidisciplinar que cruza o grosso do seu trabalho em banda desenhada com videojogos, música e até escultura. Mas, em tempos, foi um jovem aficionado do jogo de cartas Yu-Gi-Oh!, a entrar pela primeira vez num sítio que lhe tinham recomendado para encontrar cartas – a loja Mundo Fantasma, no centro comercial Brasília. Contudo, “as cartas estavam esgotadas, mas pus-me a ler uma revista de manga e comecei a ficar colado com a cena de fazer BD”, recorda Rudolfo.


Qualquer vilão ou herói de banda desenhada tem a sua origem: é ao ver falhar uma candidatura a um prémio da 18.ª edição do Amadora BD que começa a pensar na autoedição como forma de fazer chegar a sua arte aos leitores. “Já tenho 34 anos e continuo a fazer fanzines como fazia quando tinha 16”, brinca. Mas será exatamente da mesma forma? Rudolfo criou, primeiro, a editora independente Ruru Comix, e mais tarde a Palpable Press, e hoje é, também, membro ativo na editora independente Chili Com Carne, e foi vanguardista no formato de distribuição de obras para subscritores online em plataformas de crowdfunding. Ainda assim, há um método mais antigo, mas mais seguro: “sinto que em Portugal as feiras ainda são mais rentáveis. É diferente para um comprador estar diante de um autor, e não apenas a olhar para um JPEG.”

Herois de BD mar 2025

© Rui Meireles

Herois de BD mar 2025

© Rui Meireles

O estilo febril da arte de Rudolfo, todo ela sitiada por músculos implausíveis, suor e berros, é à superfície um pastiche de influências e cultura pop (não sendo impossível ver uma espécie de Pikachu bombado a passear-se pela baixa do Porto, a caminho de um encontro com um personagem do Sonic the Hedgehog), mas revela uma preocupação com dramas mais mundanos, como a impossibilidade de fazer face aos custos de vida com o rendimento de um artista. Rudolfo nota que “as únicas pessoas que conhece que fazem a vida exclusivamente com isto trabalham para as grandes editoras, como a Marvel e a DC”. “Nesses modelos, tens o apoio de grandes equipas, conseguem produzir 30 páginas numa semana. Eu, trabalhando sozinho, sou capaz de perder uma semana a fazer uma página que as pessoas leem em dois minutos”, diz.


Sobre o futuro, Rudolfo aponta um caminho com alguma ironia: “uma vez que a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e Bibliotecas decidiu terminar com a única bolsa que tinham para Banda Desenhada, acho que vou fazer a Fundação Rudolfo da Silva para fomentar a criação e edição de BD”.

Herois de BD mar 2025

© Rui Meireles

O sótão de todas as infâncias

A Livraria Timtim por Timtim apenas pelo nome avisa logo ao que vem: loja de banda desenhada com grande foco na franco-belga, destrocada com sotaque portuense. Aos comandos desde sempre está Alberto Gonçalves, uma figura reconhecidíssima entre colecionadores. Não que Alberto se identifique como colecionador, porque "qualquer livro que eu tenha é para lhe dar uso, para me sentar a ler". Também não considera a Timtim por Timtim um alfarrabista. No fundo, admite que a livraria é uma fantasia de criança: "isto é como ser um ator de cinema ou um apresentador de televisão. São profissões em que, quando chega o domingo à noite, um indíviduo não fica triste por depois ser segunda-feira e ser dia de trabalhar."


Essa infância de fantasias de Alberto estava preenchida pela chamada "macacada": "as pessoas da minha geração podiam até não gostar muito ou não ler muito banda desenhada, mas era algo que fazia parte do quotidiano de todos, simplesmente porque então não havia TV nem jogos de computador. Voltávamo-nos para o que os adultos chamavam de 'macacada', que era algo que tirava os pedagogos do sério — sobretudo porque as traduções que tínhamos eram todas em português brasileiro, e depois dávamos erros a escrever."

Herois de BD mar 2025

© Rui Meireles

Herois de BD mar 2025

© Rui Meireles

Finda a infância, Alberto fez a tropa em Cascais ("um sítio paradisíaco, e vi muito cinema no Quarteto e na Cinemateca, mas também nas máquinas de 25 escudos que mostravam filmes de mulheres a dançar"), e lança-se numa longa sequência de empregos: desde professor até quadro de uma empresa de engenharia civil. Mas foi só com a loja que encontrou a solução ideal, ou seja, um trabalho sem patrão.


O nome, "Timtim por Timtim", deve-o a uma rubrica da popularíssima revista Tintin. Mas muito facilmente o nome poderia ser outro: "as revistas de banda desenhada icónicas da minha geração tinham nomes como O Mosquito, Coleção Águia, Coleção Papagaio. Por pouco não chamei a isto 'Loja do Falcão'". A loja começou com um espaço na R. da Constituição, pouco depois mudou-se para a R.a de General Silveira, mas há cerca de 20 anos encontrou poiso permanente na R. da Conceição.

Esta localização, em plena baixa do Porto, trouxe consigo, nos últimos anos, uma clientela surpreendente: os turistas são muito atraídos pela loja, explorando os pequenos corredores com livros de formatos díspares combinados e encaixados como azulejos.


"A resposta é fácil: as personagens e heróis que estão aqui são de um imaginário partilhado, não importa as nações. E temos aqui muitos livros em italiano, em francês, em espanhol. Há aqui livros para qualquer pessoa", assegura.

Partilhar

LINK

Relacionados

agenda-porto.pt desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile