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Entrevista de perfil
Há 50 anos Nany Petrova nascia em palco e as ruas enchiam-se de Liberdade
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Entrevista Nany Petrova

Nany Petrova. O nome dispensa apresentações no universo do transformismo no Porto. É hoje a “avó” de muitas drag queens que se apresentam, em cartaz, nos vários locais da cidade – e fora dela. Viveu um tempo em que era olhada de lado, em que perdeu o apoio da família, em que, sozinha, se assumiu como voz de uma comunidade. Hoje, “quase retirada”, ainda continua a atuar no bar Invictus, “até porque o dinheiro, apesar de pouco, ainda faz falta”. Mas está numa fase de saída de cena, para "dar lugar às novas”, como se diz no meio. Mesmo sabendo que, depois dela, o legado do trabalho mais humorístico e cómico não terá seguimento. “Porque, hoje, tudo quer ser mulher e linda, mas ninguém quer ser cómica”. 

O robe transparente de penas pretas que retira do cabide é a peça perfeita para a fotografia principal. Para o início da conversa. Com ele, saem do armário um sem número de memórias que (nos) transportam (a) 50 anos de vida ligados ao transformismo de “uma das pessoas mais conhecidas na cidade”. Para alguns, a mais conhecida. Para outros, a única que ainda mantém uma veia artística que se foi perdendo com as novas gerações.


Fernando Soares tem 75 anos, está já reformado de uma vida de metalúrgico, depois de anos a fio de trabalho duro, ao qual, se orgulha de dizer, nunca faltou. Tornou-se um trabalhador exemplar de dia, sem mácula na ficha profissional. Transformou-se, ao mesmo tempo, numa figura icónica à noite.


Criou a (multi)personagem Nany Petrova a meio dos anos 70, quando o tempo parecia ter tudo contra isso: estava a chegar do serviço militar obrigatório, num período ainda periclitante do pós-Revolução de Abril, assumiu a sua homossexualidade, o que levou à consequente expulsão de casa por um pai austero que nem queria imaginar que o filho podia ser “maricas”.

Entrevista Nany Petrova

© Rui Meireles

Entrevista Nany Petrova

© Rui Meireles

E como se isso não bastasse, ainda guarda as memórias da tareia sem igual que levou e das malas que, à porta, o esperavam à chegada da guerra. Do pai, nem sinal. Era ponto assente que não havia mais lugar para Fernando ali. Era como se naquele momento tivesse ficado órfão. Porque ter um filho que beijasse um homem, “um paneleiro”, era “vergonha” demais para uma família conservadora.


Fernando caiu na rua, num período complicado, sem saber o que fazer. Já trabalhava, mas recebia o salário à semana, e nesse tempo, enquanto não encontrava um quarto disponível, fez da rua cama e casa.

Do escuro da rua às luzes dos palcos da cidade


“Mas não me prostituí e nunca me droguei”, irá repetir diversas vezes ao longo da conversa. Esteve a poucos momentos de o fazer, quando a fome apertou. Mas foi aí, naquele momento em que tudo parece não ter solução, que o transformismo surgiu, essa possibilidade de ser quem não era, ou de quem não o deixavam ser.


“Tudo começou por uma brincadeira, havia um programa em que participámos, eu e um amigo, e em que ganhámos o concurso.” Uma espécie de sátira ao Programa da Cornélia, que era transmitido pela RTP, a que deram o nome de “Cabrélia”.

Ganhei o concurso e o prémio era a atuação, durante 15 dias, numa boîte.” Foi aqui, com amigos, através de um grupo a que chamaram Star Show, que começou o caminho. Daí em diante, não houve casa de alterne, bar noturno, mais ou menos recomendável, mais ou menos (bem) frequentado, por onde não tivesse passado.


Todas as noites, o metalúrgico de dia desdobrava-se em dezenas de personagens à noite. Da Carmen Miranda (com frutas na cabeça e letra decorada) a Fafá de Belém, da drogada que fazia o delírio do público a figuras com “gaiolas na cabeça”. Nany Petrova foi criando um culto à volta de si mesma.


O pai nunca soube o que fazia. A mãe, perante a curiosidade e interesse em assistir, era informada que os bilhetes para assistir “eram muito caros”. Nunca foi. “E ainda bem, porque se eu visse a minha mãe na plateia, acho que desistia”, confessa.

Entrevista Nany Petrova

© Rui Meireles

“Nunca fui muito maricas, não sou muito de ter gestos.”

Ao longo dos anos, nunca sentiu desrespeito ou insultos na rua ou por parte de quem quer que fosse. Até porque, explica-nos, em palavras cruas, “nunca fui muito maricas, não sou muito de ter gestos”, atira.


O trabalho foi aparecendo e o cansaço também. “Havia noites em que quase não dormia, porque no dia seguinte tinha o trabalho para cumprir.” Mas hoje, aos 75 anos, reformado, orgulha-se de nunca ter desistido. “Logo que tenha dinheiro para pagar a renda, água e a luz, estou-me ‘cagando’ para o resto. Sou a pessoa mais feliz do mundo a fazer o que faço, mesmo estando reformado.”

Entrevista Nany Petrova

© Rui Meireles

Das figuras de referência ao humor em cena


Nany Petrova faz parte de um género de personagem que caiu em desuso, que se deixou consumir pela vontade das transformistas mais novas quererem parecer “mulheres bonitas”, ao invés de criar um espetáculo com conteúdo, bem-humorado e divertido. Sente saudades de um tempo em que o transformismo era olhado de forma mais artística, onde existia mais entreajuda, porque hoje, admite, “falam todas muito mal umas das outras”.


É das poucas ainda no ativo que assume um carácter mais cómico. Não cria personagens para cantar as artistas de agora, “até porque só sei falar português e um bocadinho de espanhol”, mas cria rábulas onde o humor está sempre presente. “E ver o público a sorrir, a rir, é ter o público connosco todas as noites. As pessoas estão fartas de política e querem é momentos para se divertirem”, assume.

“José Cid. Um pedante, um convencido. Veio ao meu camarim pedir para falar mais baixo e eu perguntei-lhe: ‘Mas tu sabes quem eu sou? Sou a Nany Petrova!’”

As paredes da casa que habita, passos acima da Praça de Carlos Alberto, no Porto, são um verdadeiro museu. Nelas habitam Herman José, José Raposo e Ágata, a sua musa, Romana e Marylin Monroe. E muitas versões de si, a preto e branco, a cores. Mais nova, mais velha. Em programas televisivos. Em fotografias de jornal. Em sessões mais intimistas na sala de estar.


Das vidas todas que teve, dos palcos todos que pisou, não teme em apontar a pessoa com quem menos gostou de trabalhar. “José Cid. Um pedante, um convencido. Veio ao meu camarim pedir para falar mais baixo e eu perguntei-lhe: ‘Mas tu sabes quem eu sou? Sou a Nany Petrova!’”, diz, elevando a voz, entre uma gargalhada.

Do pioneirismo do trabalho à retirada dos espetáculos


Hoje não teme dizer o que pensa. A idade e a experiência permitem-lhe isso. O respeito que conquistou. “Se vejo uma com um vestido horrível, eu digo. Se eu não gosto do show, eu digo. Mas digo na hora e esqueço logo depois. Nunca fui rancoroso e vingativo”, admite.


“Um destes dias uma delas comprou uns chinelos e eu disse-lhe: ‘até são bonitos, mas as unhas dos teus pés parecem as da águia do Benfica”. Solta nova gargalhada, por entre mais um cigarro. É a sua maneira de ser, sem medo do que os outros pensam.


Não esconde que em breve pretende retirar-se, tornar os seus espetáculos cada vez mais esporádicos. Já não tem idade para continuar a fazer espetáculos a altas horas da madrugada. Mas sabe que “sempre que sentir o bichinho, estará lá”.

Entrevista Nany Petrova

© Rui Meireles

Entrevista Nany Petrova

Porque as casas da cidade não lhe fecham a porta. Porque Nany foi pioneira em tornar essas casas locais de frequência regular, de as tornar menos marginalizadas, menos ostracizadas. De lhes conferir um caráter artístico.


Talvez por isso, por ser a mais respeitada entre todas, será ela que abrirá o Festival Precárias no Teatro Rivoli, neste sábado, 6 de abril. A partir das 21h00, o Foyer do Grande Auditório apresenta dois números da artista, numa iniciativa com curadoria de Tita Maravilha, e que contará com um conjunto de performances de artistas que se sentem, de algum modo, marginalizados – pelo género ou pelas temáticas abordadas.


Nany Petrova já preparou tudo, sabe o que irá apresentar. “Talvez duas músicas da Ágata”, a musa que ainda hoje continua a ser sua, por eleição. E, apesar dos temas que apresentará, sabemos que nunca estará “sozinha”.

por José Reis

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