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Conjugar o Porto
Passarinhar com Ana Deus
Conjugar o Porto Passarinhar com Ana Deus

É uma voz singular na música portuguesa. Mais conhecida por ter sido vocalista dos Ban e por ser um dos Três Tristes Tigres, Ana Deus tem um prolífico e diverso percurso musical, que passa por colaborações e projetos inovadores, como é o caso de Osso Vaidoso, Bruta e Ruído Vário – apenas para citar alguns. A Agenda Porto esteve à conversa com a artista que gosta de interligar música, poesia e imagem, e que está prestes a lançar Arca, o novo álbum dos Três Tristes Tigres (TTT). 

Nascida em Santarém, em 1963, mudou-se para o Porto em 1981 e, desde então, passou a chamar casa a esta cidade. “Já sou mais portuense do que escalabitana. É aqui que tenho os meus amigos e foi aqui que nasceu a minha família. Mas foi principalmente aqui que me senti acolhida e diluída ao mesmo tempo, porque uma cidade pequena como Santarém pode ser bem mais cruel quando se é jovem adolescente, [e onde era mais difícil encontrar] pessoas parecidas comigo, ou com os mesmos gostos que eu”, admite. Ana considera que “teve sorte” quando se mudou, nos anos 80, porque “a coisa estava a começar a animar” no Porto. “Era fácil encontrar pessoas, e acho que tive bastante sorte com as pessoas que encontrei.”


Foi o caso de João Loureiro, dos Ban, que a convidou a juntar-se à banda depois de a ter ouvido cantar no Aniki Bobó. É com os Ban que grava o seu primeiro disco, Surrealizar, em 1988, que rapidamente se torna um sucesso. Contudo, admite que não lhe agradou, “de repente, ser reconhecida no meio da rua”. “Não gostava. E eu, que sempre tinha gostado de cantar, era naturalmente 'cantaroleira', comecei a ficar um bocadinho mais tímida, mais receosa. Portanto, aquilo que me catapultou também me travou um bocadinho. Acho que foi um pau de dois bicos”, diz.


Num dos temas desse álbum, “Ideal Social”, Ana canta “não me dês moral, dá-me um ideal irreal social popular avançado, surrealizar por aí (…)”. Perguntamos-lhe o que significava, afinal, surrealizar. “Liberdade e criatividade”, sintetiza. “Havia bastante esperança – quando se é novo tem-se esperança, e havia bastantes possibilidades.” 


Mas sobre a sua passagem pelos Ban comenta: “eu e o Loureiro éramos uma junção um bocadinho improvável – e eu acho que foi exatamente essa a ideia dele. Eu estava mais ligada a outro tipo de música, ao rock e ao punk rock, tanto de vestimenta como de prática. E a coisa conjugou-se ali de uma forma um bocadinho estranha, mas que resultou bem porque o disco foi muito cuidado, foi muito bem produzido.”

Conjugar o Porto Passarinhar com Ana Deus

Ana Deus © Rui Meireles

Ainda gravou mais dois discos com a banda, mas depois veio “a sua intenção de gravar outras coisas”, tendo tido “o grande incentivo” da amiga Regina Guimarães, poetisa, dramaturga e letrista, com quem, no início dos anos 90, fundou a banda que tem no nome um trava-línguas: Três Tristes Tigres ("foi uma maldadezinha para as pessoas não se esquecerem; acho que foi uma boa aposta", ri-se). “A Regina estava sempre a buzinar-me ‘eu escrevo-te, vamos fazer músicas’, porque eu já tinha começado a trabalhar com ela para projetos de teatro.”


Partes Sensíveis (1993), Guia Espiritual (1996) e Comum (1998) foram os álbuns lançados pelos TTT na última década do século XX. Depois de um hiato de 22 anos, o trio, composto por Deus, Guimarães e Alexandre Soares, lançou, em 2020, Mínima Luz, e prepara-se agora para lançar, possivelmente no mês de maio, o quinto álbum de originais. O disco, que era para se chamar Atlas, entretanto, mudou de nome e vai intitular-se Arca. “De alguma forma, fala muito em migrações, tanto humanas como de animais. A maneira como as coisas vão mudando. Sempre existiram migrações. Por isso é que também falo dessa perspetiva eterna. Os migrantes não são uma coisa de agora; sempre foi assim. E os animais também migram. O vento anda por todo o lado... Não há barreiras no planeta.”


“Ó vida que se semeia/ Todos nascemos migrantes” são versos do primeiro single, “Exodus”, lançado o ano passado, que conta com a participação, na voz, da cantora e compositora A Garota Não, e cujo videoclipe é da autoria de Deus.


Arca era um nome que Ana Deus já tinha equacionado para outros projetos e que “acabou por cair como uma luva” neste disco, não só pelos temas, mas também pela capa, da autoria da artista Hilda Reis. “Ela faz colagens, e começou a fazer barquinhos de papel para, de alguma forma, nós compormos a capa. E eu, que já andava com a Arca [na cabeça], ao ver os barquinhos de papel, achei que fazia todo o sentido”, conta.

Conjugar o Porto Passarinhar com Ana Deus

© Rui Meireles

Viver devagar


Em 2022, foi uma das homenageadas na exposição “Mulheres que fazem barulho”, organizada pela Casa Comum e pelo Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.  “Viver Depressa, Morrer Tarde” era o mote do espaço que celebrava várias mulheres no rock português, entre as quais estava Ana Deus, que contraria esta máxima. “Eu vivo devagar; gosto de viver devagar. Hoje vim aqui e hoje já não faço mais nada”, ri-se. “Parece assim uma arrogância dizer isso, mas é uma tentativa que eu tenho de não fazer muita coisa. E, às vezes, fazer só aquilo que me apetece. Eu agora interesso-me muito por vídeo; estou aqui a dizer isto, mas se tiver tempo antes de fazer o jantar ainda vou manipular ali uns videozinhos e arranjar imagens e fazer isto e aquilo. Portanto, não é tão verdade quanto isso, mas não quero levar uma vida agitada, não quero de todo.”


Deus, que escolheu como mote para esta conversa passarinhar (já lá vamos!), diz que continua a gostar da escala do Porto, mas que “por causa da idade”, quase não sai, “já não passarinha tanto”. “Estou mais recatada, estou mais em casa... Nós começamos a medir o nosso tempo de outra forma, mais devagar. Eu vivo devagar.”


E é no seu vagar que continua a ser convidada - e a aceitar - colaborar com músicos das novas gerações, como é o caso dos Glockenwise, que a desafiaram a participar no tema “Vida Vã”. “Isso significa que já dei a volta, que estou tão velha que já acham graça.”   

Ana continua a reinventar-se enquanto artista e não tem medo de experimentar, de arriscar, movendo-se pelos seus gostos pessoais. “A maior parte dos projetos que eu tenho, que fui fazendo, partiram da minha iniciativa. Penso em fazer uma coisa, depois penso no músico que encaixaria bem, com quem gostaria de trabalhar.” Exemplo disso é o projeto Bruta (2015) com Nicolas Tricot, que cruza música e poesia. Juntos musicaram poemas de autores visitados pela loucura.


“Foi uma ideia um bocadinho ingénua porque na altura estava muito interessada nos artistas brutos, mas na pintura e no desenho. Gosto de arte bruta, com aquela expressão que não precisa de ser requisitada; a pessoa faz aquilo, não importa se alguém está a ver. E transformou-se também num grande filão comercial. As pessoas que estão metidas em instituições e que começam a produzir aquelas obras super coerentes - porque tudo é muito coerente - não andam propriamente a experimentar, estão a exprimir-se”, desfia.


Foi nessa altura que encontrou o livro “Reino dos Bichos e dos Animais é o Meu Nome”, de Stela do Patrocínio, uma afro-brasileira analfabeta que esteve num manicómio, que a inspirou a criar Bruta. A partir deste tipo de “expressão sincera”, Ana fez um levantamento com autores portugueses e estrangeiros, mas acabou por "ir parar aos escritores que foram considerados enlouquecidos, não sendo analfabetos, como a Stela do Patrocínio”, acrescenta.

Conjugar o Porto Passarinhar com Ana Deus

© PIXBEE

Passarinhar com Ana Deus


Ana leva-nos numa viagem ao Porto dos anos 80 e 90 e aponta alguns locais por onde passarinhava, de olhos bem abertos, e dos quais tem boas recordações, como o Rivoli, onde gravámos a nossa entrevista [ver vídeo abaixo]. “Escolhi o Rivoli por fazer parte da minha rota como espectadora e como artista. E já vi este espaço de muitas formas; já vi o Rivoli como uma danceteria onde havia festas. Não existia plateia; o chão era um estrado de madeira. Funcionava como se fosse uma discoteca a partir de determinada hora, e onde assisti a um fantástico concerto do Peter Murphy em que o chão abateu durante a canção Kick in the Eye”, recorda. “O chão abriu, engoliu algumas pessoas, que não se magoaram muito, e foram subidas com a ajuda dos músicos para cima do palco, e assim se fez uma grande memória, pelo menos minha”, ri-se. Também tem bem presente na sua memória um concerto que viu ali “da fantástica Elza Soares, ainda muito elegante”. “Foi um dos concertos mais bonitos a que assisti”, assegura, lembrando, também, alguns espetáculos e eventos em que participou no Rivoli, entre os quais as Quintas de Leitura. “As Quintas de Leitura transitavam entre o Teatro Campo Alegre e o Rivoli. Aliás, aprendi muito com as Quintas de Leitura, aprendi várias maneiras de interpretar poemas... Conheci muitos autores novos, poetas novos”, conta.


A artista traça, ainda, um percurso pela cidade a partir da Escola Árvore, no Passeio das Virtudes. “Foi onde, nos anos 80, acabei por conhecer muita gente ligada à música, e acho que foi o que me empurrou para este caminho, porque mais importante do que as escolas são as pessoas”, defende. A partir do Passeio das Virtudes, a artista conta-nos como passarinhava pela cidade: “o percurso passava pelo antigo Luso, depois seguíamos para o Moinho de Vento, que era um bar inclusivo, gay friendly – quer dizer, naquela altura não era preciso dizer isso, essa expressão não existia; qualquer pessoa era bem-vinda, naturalmente. E acabávamos por ir parar à Foz e à Boavista; dávamos a volta, às vezes chegámos a passar pelo Foco quando havia o Loco Mosquito – isto era nos anos 80”, ri-se.

Apesar de hoje “passarinhar menos”, gosta de passar pela Culturgest “para ver as exposições que lá estão” e é frequentadora assídua da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, onde vai buscar muitos livros. “Costumo ver as exposições que estão na Galeria Municipal, e depois passarinho por lá, que [os jardins do Palácio de Cristal] têm cada vez mais galináceos brancos”, diz.


Foi, aliás, também, por causa dos pássaros que Ana diz que escolheu “passarinhar” para mote desta rubrica. A artista defende que as aves “têm mudado” na cidade. “Quando vivi em Santarém tinha muitos animais; passo por um animal e olho para ele, não sou indiferente, e é normal ligar-me aos animais, e tenho reparado na quantidade de pássaros exóticos que também aparecem no meio dos bandos de pombas”, diz. Segundo a artista, há “vários tipos de papagaios, periquitos esquisitos, e já começam a vir as gralhas pretas e brancas… Portanto, há animais que se estão a aproximar mais da cidade, talvez por uma questão de sobrevivência. A cidade atrai cada vez mais pessoas vindas de todo o lado à procura de sustento, mas também animais, nomeadamente as aves, que têm mudado muito ao longo dos tempos”.


Deus defende, ainda, que o Porto devia ter pombais: "Reparo que as pombas têm quase todas as patas sem parte dos dedos e muitas delas ainda têm cordéis…. Imagino as pombas a tentarem dormir em sítios estranhos, perto de arames e ferros. Querem voar e estão presas. E pergunto por que é que não há pombais. Há um pombal, que eu saiba, em Serralves, muito bonito, e acho que devia haver mais pombais na cidade, para as pombas não andarem a cagar os edifícios, não é? E, ao mesmo tempo, podiam ter controle sobre a população. É um bocadinho como os sem abrigo. É preciso arranjar sítios para as pessoas.”

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