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Exposicao O defeito perfeito
© Bruno Lopes
"O defeito perfeito"
Exposição de José Loureiro
Exposicao O defeito perfeito
© Bruno Lopes

O defeito perfeito

Pese embora seja o que for, tudo continua a ser como sempre foi: às curvas, por uma ravina, noite cerrada. Quanto à depilação, mais vale tosca, com pêlos desgrenhados a emergir ao abandono a macular a uniformidade monótona das superfícies lisas e lustrosas: suporta-se melhor a canícula.

Pese pois embora a depilação meticulosa, é sempre possível que um ou outro pêlo escape, e porfie. Mas estejam estes bem cientes, os que escapam, que é apenas uma questão de tempo até serem capturados e varridos para um canto insalubre que nunca foi limpo. Talvez haja algum pêlo escondido nalgum estreito profundo, não observável a olho nu ou à lupa — e não detectável pela apertada rede de satélites que orbita a Terra e a bisbilhota com o afã maníaco do amante de filatelia à procura do defeito na serrilha do selo singular—, que passe despercebido de todas as vezes que a debulhadora se aproxima aos roncos sedenta de sangue. Os últimos, os que teimam em não mostrar-se, que rejubilem, pois não têm de passar pela provação de estar constantemente a entrar e a sair de cena, numa farsa menor, à mercê dos abusos de um encenador com dificuldades em decidir-se.

Um buço farto sempre preservava um ecossistema. Com a depilação levada ao extremo, fazendo uso dos últimos desenvolvimentos técnicos, incluindo a inteligência artificial, a mais recente promessa de aniquilação total do pêlo, tudo desemboca num campo raso desprovido de vida e sombra com a tonalidade avermelhada da carne a enlanguescer ao Sol.

Narciso, o primeiro, o original, sendo naturalmente belo, não precisou de depilar-se para se apaixonar perdidamente pelo seu reflexo. O mesmo não poderá dizer-se de todos os que lhe seguiram na peugada, gerações e gerações deles. Nesta longuíssima sequência, num ponto difícil de determinar, alguém inventou a pinça e assim nasceu uma técnica e um método para ajudar a compor a figura. Mas a técnica e o método só funcionam quando alguma coisa corre mal; e, quando não corre mal, é imperativo forçar a coisa nessa direcção. É por isso que a depilação exímia é um aborrecimento e é já tempo de todos aqueles que a ela se submetem com uma fé cega, ficarem bem cientes de que não há milagres.

É preciso regressar ao primeiro Narciso para tentar perceber como foi possível tudo acontecer sem recorrer à depilação; ou então, não querendo teimosamente abdicar desta, pugnar por depilações desleixadas e contornar desta forma a extrema beleza daquele — já que igualá-la é uma impossibilidade comprovada — pelo lado da facécia.

Assim na pintura como na depilação.

As más pinturas não têm defeito nenhum. As boas pinturas têm, nalgum sítio, um pequeno defeito. Nas pinturas ao centro do Panteão da Pintura, o defeito — sendo em todas, sem excepção, grande — deixa de ser visível, mesmo à luz rasante: é o defeito perfeito, pese embora seja o que for.

José Loureiro

18
Jan
2025-01-18T16:00:00Z
2025-03-15T20:00:00Z
Galeria Fernando Santos
16:00
Gratuito
R. de Miguel Bombarda, 526

Mais info

Exposicao O defeito perfeito
Gratuito
Exposição
Animais Permitidos

O defeito perfeito

Pese embora seja o que for, tudo continua a ser como sempre foi: às curvas, por uma ravina, noite cerrada. Quanto à depilação, mais vale tosca, com pêlos desgrenhados a emergir ao abandono a macular a uniformidade monótona das superfícies lisas e lustrosas: suporta-se melhor a canícula.

Pese pois embora a depilação meticulosa, é sempre possível que um ou outro pêlo escape, e porfie. Mas estejam estes bem cientes, os que escapam, que é apenas uma questão de tempo até serem capturados e varridos para um canto insalubre que nunca foi limpo. Talvez haja algum pêlo escondido nalgum estreito profundo, não observável a olho nu ou à lupa — e não detectável pela apertada rede de satélites que orbita a Terra e a bisbilhota com o afã maníaco do amante de filatelia à procura do defeito na serrilha do selo singular—, que passe despercebido de todas as vezes que a debulhadora se aproxima aos roncos sedenta de sangue. Os últimos, os que teimam em não mostrar-se, que rejubilem, pois não têm de passar pela provação de estar constantemente a entrar e a sair de cena, numa farsa menor, à mercê dos abusos de um encenador com dificuldades em decidir-se.

Um buço farto sempre preservava um ecossistema. Com a depilação levada ao extremo, fazendo uso dos últimos desenvolvimentos técnicos, incluindo a inteligência artificial, a mais recente promessa de aniquilação total do pêlo, tudo desemboca num campo raso desprovido de vida e sombra com a tonalidade avermelhada da carne a enlanguescer ao Sol.

Narciso, o primeiro, o original, sendo naturalmente belo, não precisou de depilar-se para se apaixonar perdidamente pelo seu reflexo. O mesmo não poderá dizer-se de todos os que lhe seguiram na peugada, gerações e gerações deles. Nesta longuíssima sequência, num ponto difícil de determinar, alguém inventou a pinça e assim nasceu uma técnica e um método para ajudar a compor a figura. Mas a técnica e o método só funcionam quando alguma coisa corre mal; e, quando não corre mal, é imperativo forçar a coisa nessa direcção. É por isso que a depilação exímia é um aborrecimento e é já tempo de todos aqueles que a ela se submetem com uma fé cega, ficarem bem cientes de que não há milagres.

É preciso regressar ao primeiro Narciso para tentar perceber como foi possível tudo acontecer sem recorrer à depilação; ou então, não querendo teimosamente abdicar desta, pugnar por depilações desleixadas e contornar desta forma a extrema beleza daquele — já que igualá-la é uma impossibilidade comprovada — pelo lado da facécia.

Assim na pintura como na depilação.

As más pinturas não têm defeito nenhum. As boas pinturas têm, nalgum sítio, um pequeno defeito. Nas pinturas ao centro do Panteão da Pintura, o defeito — sendo em todas, sem excepção, grande — deixa de ser visível, mesmo à luz rasante: é o defeito perfeito, pese embora seja o que for.

José Loureiro

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