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15º FESTIVAL PORTA-JAZZ
Contra o Relógio, a Favor do Tempo
O tempo: bem escasso, susceptível de usos alternativos. Na economia da atenção, quão anti-lógico será hoje pedir-se: o tempo de um concerto, em exclusivo! Ou dois, ou três, um festival inteiro... Ou então: parai todos os relógios! Revogai o calendário de reuniões zoom, o ticket do estacionamento, a hora de ir buscar os filhos à natação, o prazo para trocar o casaco que não serve, a corrida contra o engarrafamento na VCI! Menos ainda queremos sucumbir ao tempo urgente e efémero das redes, do consumo, dos anúncios, o tempo de usar e deitar fora, o tic-tac das notícias, o irreflectido das opiniões. O antídoto é tão ingénuo quão eficaz: no Festival Porta-Jazz construamos, pelo menos por instantes, um tempo novo e diferente.
Tempo índice. Reflexo de um ano que é actividade da Associação Porta-Jazz, quotidiana em contínuo, concertos, residências artísticas, lançamentos discográficos, jam sessions às sextas, duos de música exploratória nos Maus Hábitos às terças, exposições, circulação fora de portas, o corre-corre diário de ensaios no Espaço Porta-Jazz, no sofá da galeria o guitarrista dorme abraçado ao instrumento, alguém toca piano na sala 2, está já desde manhã cedo (há tempos e tempos...) às voltas com a mesma melodia, enquanto que no jardim o tempo das podas passou e agora é tempo de pousio.
Tempo extemporâneo. Bill Evans falava de um tipo de arte visual japonesa na qual se pinta com um pincel especial um pergaminho tão fino e de tal forma esticado que se rasga se a linha for interrompida—há pois que avançar sem tempo para ponderações supérfluas mas com a máxima convicção, o que é infernalmente exigente, convocando a mesma "disciplina severa e única que é a do músico de Jazz e improvisador". Disciplina que decorre do fluir inelutável e irreversível do tempo. Roma, 1968: Frederic Rzewski vira o gravador de bolso para Steve Lacy. "Consegues descrever em 15 segundos a diferença entre composição e improvisação?" Lacy: "Na composição tens todo o tempo para decidir o que dizer em 15 segundos, enquanto que na improvisação tens 15 segundos."— e a resposta demorou exatamente 15 segundos. Mas ainda, porém, é a música que verdadeiramente faz o tempo, tempo cronométrico, estrutural, transcendente, linear ou não-linear, horizontal ou vertical, suspenso, cíclico, simétrico, processual, o tempo do cosmos, o tempo do corpo, emergência e pulsação.
Tempo planetário-social. Isto é, aquele que se mede já não em segundos mas em anos. Pois este é o 15.º ano de Festival! O tempo foge e sabemos disso porque tudo muda. A Associação Porta-Jazz consolidou-se hoje como um pólo de reconhecida vitalidade e o centro de uma comunidade com sede no Porto mas de alcance mundial. A vida anda, a comunidade é agora multigeracional. E um ano inteiro é desde logo um ano inteiro de edições discográficas, que o cartaz celebra. Acácio Salero lidera um quarteto a partir da banqueta de baterista. Joana Raquel canta belíssimas canções cheias de ar e audácia, na cadência do respirar. Gonçalo Marques e Demian Cabaud recebem as frases angulares e lépidas de John O'Gallagher e a ponderação e experiência de Jeff Williams. Cabaud também com o seu quinteto e o disco "Árbol Adentro", mestres tanto do tempo dos grandes gestos como do balanço dos micro-tempos. João Fragoso "Canta Derrocada", sentados nos escombros e ainda assim confiantes no porvir — luz e sombra. Os Paira pairam entre o tempo métrico e o tempo livre. Os Godua inspiram-se no presente e futuro incertos dos corredores do centro comercial Stop. João Próspero e "Sopros", jovens com futuro à frente, virtuosos de estéticas doutrora. Ou não começasse o Festival precisamente no mês de Janus. O duplo olhar que aliás serve de mote a todo o programa.
Tempo espaço. Na periferia, a distância, viagens longas e caras, e pior: como se diz, longe da vista... A Porta-Jazz atalha caminho, faz parcerias com entidades também geridas por músicos: a AMR-Genève (Suiça) com o quarteto de Emmanuelle Bonnet, a Bezau Beatz (Áustria) com How Noisy Are The Rooms?, a Improdimensija (Lituânia) com Agustí Fernández e Liudas Mockūnas, e noutra escala, a Robalo (Lisboa) com Sonic Tender. Projectos em vai-e-vem, artistas destacados na montra do Festival.
Ars longa. Efémero de um solo, de um tempo/contratempo; ou tempo que perdura em obras novas. José Soares traz “Soma”, o espectáculo interdisciplinar que criou com a artista Várvara Tazelaar, no contexto de uma (já duradoura) parceria com o Festival Guimarães Jazz. A estrear, o Ensemble Mutante #2, conduzido por Kaja Draksler, com três vozes, em cada qual a duração plácida do ritmo da vida. Para abertura do programa, o duo Lukraak desdobrando andamentos nos Maus Hábitos.
A seu tempo. Crianças, que como se sabe são o futuro, e suas famílias divertem-se em “Diversão / Improvisação”. Conservatório do Porto, ART´J e ESMAE apresentam os alunos, e à noite há sempre lugar a jam session, tempo de aprendizagem, partilha, espontaneidade, tempo bem passado, com Rui Miguel Abreu a passar discos ajudando à festa. E toda a gente é convidada para, num ápice, integrar um “Coro Instantâneo”.
Em “Ursa Maior”, um grande ensemble celebratório com membros da Porta-Jazz. Para que o tempo se expanda num infinito de memória e esperança. Espectáculo sem o afã vácuo da sociedade do espectáculo.
Com o tempo de feição, avançamos rumo à música sem rumo certo.
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15º FESTIVAL PORTA-JAZZ
Contra o Relógio, a Favor do Tempo
O tempo: bem escasso, susceptível de usos alternativos. Na economia da atenção, quão anti-lógico será hoje pedir-se: o tempo de um concerto, em exclusivo! Ou dois, ou três, um festival inteiro... Ou então: parai todos os relógios! Revogai o calendário de reuniões zoom, o ticket do estacionamento, a hora de ir buscar os filhos à natação, o prazo para trocar o casaco que não serve, a corrida contra o engarrafamento na VCI! Menos ainda queremos sucumbir ao tempo urgente e efémero das redes, do consumo, dos anúncios, o tempo de usar e deitar fora, o tic-tac das notícias, o irreflectido das opiniões. O antídoto é tão ingénuo quão eficaz: no Festival Porta-Jazz construamos, pelo menos por instantes, um tempo novo e diferente.
Tempo índice. Reflexo de um ano que é actividade da Associação Porta-Jazz, quotidiana em contínuo, concertos, residências artísticas, lançamentos discográficos, jam sessions às sextas, duos de música exploratória nos Maus Hábitos às terças, exposições, circulação fora de portas, o corre-corre diário de ensaios no Espaço Porta-Jazz, no sofá da galeria o guitarrista dorme abraçado ao instrumento, alguém toca piano na sala 2, está já desde manhã cedo (há tempos e tempos...) às voltas com a mesma melodia, enquanto que no jardim o tempo das podas passou e agora é tempo de pousio.
Tempo extemporâneo. Bill Evans falava de um tipo de arte visual japonesa na qual se pinta com um pincel especial um pergaminho tão fino e de tal forma esticado que se rasga se a linha for interrompida—há pois que avançar sem tempo para ponderações supérfluas mas com a máxima convicção, o que é infernalmente exigente, convocando a mesma "disciplina severa e única que é a do músico de Jazz e improvisador". Disciplina que decorre do fluir inelutável e irreversível do tempo. Roma, 1968: Frederic Rzewski vira o gravador de bolso para Steve Lacy. "Consegues descrever em 15 segundos a diferença entre composição e improvisação?" Lacy: "Na composição tens todo o tempo para decidir o que dizer em 15 segundos, enquanto que na improvisação tens 15 segundos."— e a resposta demorou exatamente 15 segundos. Mas ainda, porém, é a música que verdadeiramente faz o tempo, tempo cronométrico, estrutural, transcendente, linear ou não-linear, horizontal ou vertical, suspenso, cíclico, simétrico, processual, o tempo do cosmos, o tempo do corpo, emergência e pulsação.
Tempo planetário-social. Isto é, aquele que se mede já não em segundos mas em anos. Pois este é o 15.º ano de Festival! O tempo foge e sabemos disso porque tudo muda. A Associação Porta-Jazz consolidou-se hoje como um pólo de reconhecida vitalidade e o centro de uma comunidade com sede no Porto mas de alcance mundial. A vida anda, a comunidade é agora multigeracional. E um ano inteiro é desde logo um ano inteiro de edições discográficas, que o cartaz celebra. Acácio Salero lidera um quarteto a partir da banqueta de baterista. Joana Raquel canta belíssimas canções cheias de ar e audácia, na cadência do respirar. Gonçalo Marques e Demian Cabaud recebem as frases angulares e lépidas de John O'Gallagher e a ponderação e experiência de Jeff Williams. Cabaud também com o seu quinteto e o disco "Árbol Adentro", mestres tanto do tempo dos grandes gestos como do balanço dos micro-tempos. João Fragoso "Canta Derrocada", sentados nos escombros e ainda assim confiantes no porvir — luz e sombra. Os Paira pairam entre o tempo métrico e o tempo livre. Os Godua inspiram-se no presente e futuro incertos dos corredores do centro comercial Stop. João Próspero e "Sopros", jovens com futuro à frente, virtuosos de estéticas doutrora. Ou não começasse o Festival precisamente no mês de Janus. O duplo olhar que aliás serve de mote a todo o programa.
Tempo espaço. Na periferia, a distância, viagens longas e caras, e pior: como se diz, longe da vista... A Porta-Jazz atalha caminho, faz parcerias com entidades também geridas por músicos: a AMR-Genève (Suiça) com o quarteto de Emmanuelle Bonnet, a Bezau Beatz (Áustria) com How Noisy Are The Rooms?, a Improdimensija (Lituânia) com Agustí Fernández e Liudas Mockūnas, e noutra escala, a Robalo (Lisboa) com Sonic Tender. Projectos em vai-e-vem, artistas destacados na montra do Festival.
Ars longa. Efémero de um solo, de um tempo/contratempo; ou tempo que perdura em obras novas. José Soares traz “Soma”, o espectáculo interdisciplinar que criou com a artista Várvara Tazelaar, no contexto de uma (já duradoura) parceria com o Festival Guimarães Jazz. A estrear, o Ensemble Mutante #2, conduzido por Kaja Draksler, com três vozes, em cada qual a duração plácida do ritmo da vida. Para abertura do programa, o duo Lukraak desdobrando andamentos nos Maus Hábitos.
A seu tempo. Crianças, que como se sabe são o futuro, e suas famílias divertem-se em “Diversão / Improvisação”. Conservatório do Porto, ART´J e ESMAE apresentam os alunos, e à noite há sempre lugar a jam session, tempo de aprendizagem, partilha, espontaneidade, tempo bem passado, com Rui Miguel Abreu a passar discos ajudando à festa. E toda a gente é convidada para, num ápice, integrar um “Coro Instantâneo”.
Em “Ursa Maior”, um grande ensemble celebratório com membros da Porta-Jazz. Para que o tempo se expanda num infinito de memória e esperança. Espectáculo sem o afã vácuo da sociedade do espectáculo.
Com o tempo de feição, avançamos rumo à música sem rumo certo.
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